Modos de fazer e a responsabilidade no jornalismo
A mídia falar da mídia tem sido fato constante em qualquer meio de comunicação social. A auto-promoção passou de marketing a narrativas que trazem o making off das redações. Pensar uma crítica das práticas jornalísticas é pensar em jornalista que escreve para jornalista, jornalista que fala sobre jornalista, mídia que critica a si mesma, conteúdos evidentes em muitos de seus textos.
Verificamos isto a partir da auto-referencialidade expressa em textos de cartas aos leitores de revistas semanais. Na seção “Carta ao Leitor” da revista Veja, encontramos quatro tipos de cartas que caracterizamos como: Tradicional: texto opinativo e/ou informativo; Tradicional auto-referencial: texto que cita reportagem na edição presente ou em outras da mesma revista; O nome da revista : texto explicitando a marca da revista; e Celebrativo: texto que celebra o jornalismo e/ou descreve os processos de produção de notícias.
Oito “cartas” podem ser situadas nos modos da revista se auto-referenciar no contexto celebrativo. Tal estratégia fica clara em alguns títulos, como, “Profissão: repórter” (06/05/2009), “Pagos para descobrir” (13/05/2009) e “Nossa repórter em Honduras” (07/10/2009). Nestes exemplos a enunciação se faz voltada a um processo de celebração e de produção de reportagens que compõe a respectiva edição. Antônio Fausto Neto (2007) conceitua a celebração do jornalismo como uma justificativa da inserção de auto-referencialidade “no contexto da edição e, consequentemente, de legitimar a performance deste sistema de operação”.
Para pensar uma crítica das práticas jornalísticas sob este foco, consideramos a seção aqui trabalhada como um Sistema de Responsabilização da Mídia (Media Accountability Systems – MAS) proposto por Claude-Jean Bertrand (2002). Ou seja, “qualquer meio de incitar a mídia a cumprir adequadamente seu papel”. Este autor considera a “Carta do Editor” como um MAS, e a “Carta ao Leitor”, que aqui focamos, pode ser enquadrada neste gênero à medida que se trata de um texto que fala pela revista, e embora não seja assinado, sabemos que tais seções são encargos de direções editoriais.
Veja associa a responsabilidade da mídia e a auto-referência num mesmo espaço: Carta ao Leitor. Nestas condições a seção, se configura como um MAS impresso e interno, mas que se exterioriza propositalmente. Interno que se exterioriza pelo fato de que a idéia proposta na categoria celebrativa faz um movimento de “dentro para fora”. Durante esta ação, os jornalistas são apresentados aos leitores no texto como protagonistas, bem como na descrição dos bastidores da matéria.
Embora a “Carta ao Leitor” não seja formalmente considerada um MAS por Bertrand, ela se comporta como um mediador que leva ao leitor não apenas a opinião da revista, mas também responde sobre “seus modos de fazer” e a responsabilidade que envolve todo o processo enquanto “voz da revista”, e neste espaço, procura apresentar provas de qualidade de seu produto. Em outras palavras, entendemos a seção não como um “MAS propriamente dito”, mas como um reflexo daquilo que a mídia tenta expressar através de um código próprio (descrição da atividade) na tentativa de oferecer transparência ao público.
A auto-referência que indicamos como celebração do jornalismo, ou o que também podemos chamar de processos de produção – ao pensarmos pelo ponto de observação da revista após acompanhar vários textos daquelas cartas – se presta ao serviço de qualificar a atividade jornalística e seus produtos. Ou seja, trabalha como um sistema de responsabilização da mídia. Examinemos isto em trecho de uma das cartas:
“As reportagens de Lauro Jardim e Duda Teixeira reafirmam o valor ainda sem sucedêneo das matérias jornalísticas elaboradas por profissionais com o tempo, recursos, preparo e objetividade necessários para informar e esclarecer de modo confiável” (Profissão: repórter, Carta ao Leitor, Revista Veja, 06/05/2009), (grifo nosso).
Enquanto mediador entre o que acontece nos bastidores da revista e o leitor, a seção atua auto-referencialmente como um espaço que justifica e elucida suas reportagens, bem como seus modos de fazer. Além de descrever os processos de produção das matérias enaltece seus jornalistas apresentando um propósito relativo a preferência por determinada pauta. O texto inicia abordando determinado assunto, faz um resumo sobre o tema tratado e insere o jornalista-ator:
“Para quem tem menos de 30 anos, a expressão “Cortina de Ferro” é apenas estranha. Ela foi, no entanto, sinônimo de um pesadelo que tirou o sono do mundo por mais de quatro décadas no século passado. (...) O jornalista de VEJA Diogo Schelp, que quando criança morou com os pais na Alemanha, lembra-se de um colega de escola apontando com temor as torres dos guardas armados (...) Ele embarcou com a missão jornalística de entender o que mudou no país desde a unificação. A reportagem de Schelp começa na página 126 (...)” (O dia em que a liberdade venceu, Carta ao Leitor, Revista Veja, 11/11/2009).
Neste exemplo, podemos conferir que, além de levar ao leitor uma informação adicional sobre a reportagem, o texto da Carta ao Leitor introduz o jornalista na história como um dos protagonistas da ação.
Encontramos comentários das cartas aos leitores no espaço que a revista confere à participação da audiência que, através de pequenos textos, explicita suas impressões, opiniões, sugestões e/ou reclamações. Porém, devemos levar em consideração que os textos passam por “edições”, fato mencionado pela própria revista: “Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas resumidamente” (trecho do texto que traz orientações sobre o envio de cartas à redação, encontrado ao final da seção Leitor).
É certo que podemos identificar um processo de interação entre leitor e mídia ao articularmos estes ambientes dentro da revista. Mas pensando na verdadeira utilidade da “Carta ao Leitor”, encontramos dificuldades em visualizá-la no sentido de servir ao consumidor como um programa que venha melhorar a qualidade de seus serviços. Bertrand atribui aos MAS a importância de indicar ao público princípios e regras jornalísticas, além de entender quais as necessidades demandadas pelo primeiro.
Embora a seção não seja explicitamente um sistema de responsabilização da mídia, como já falamos, ela trata da própria revista, atua dentro dos princípios da organização e proporciona a visibilidade de seus colaboradores colocando em foco seus predicados, esforçando-se para comprovar a qualidade do seu produto. Seja ele confiável ou não, qualidade que acaba tendo o aval confiado ao julgamento do seu público.
Porém, táticas de persuasão ao público que envolvem operações de produção como álibi da qualidade, podem se encaixar em outra classificação apontada por Bertrand (2002), a de “manobras de relações públicas”. O autor descreve tal categoria, vista assim por alguns críticos, como uma manipulação da mídia que apenas estaria prevendo lucro e/ou propaganda. No entanto, quando verificamos algumas cartas de leitores, mesmo que editadas, entendemos que nem sempre o público aceita o que lhe é imposto. Mas a pergunta permanece: seria mais uma estratégia da mídia abrir este espaço para a “opinião pública” com o intuito de se mostrar um veículo de liberdade de expressão?
É possível que a circulação entre os textos das cartas aos leitores e as respostas da recepção, faça parte da estratégia dos MAS de tentar provar ao público que a vocação do meio de comunicação, bem como seus profissionais, é satisfazê-lo como foi proposto por Bertrand (2002). A auto-referência vinculada a este sistema é mais um meio das mídias conquistarem a audiência da confiabilidade. Ou seja, apresentando seus modos de fazer mostrar ao leitor em quem este pode depositar credibilidade. E ainda, conforme aquele autor, indicar que os Sistemas de Responsabilização da Mídia possuem regras e princípios, existindo tanto para prestar conta aos seus leitores, como para entender as necessidades dos mesmos.
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Por Aline Weschenfelder: jornalista, formada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos e mestranda em Comunicação Social.
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