“Utopia (à moda de Fourier): a de um mundo onde só houvesse diferenças,
de modo que diferenciar-se não seria mais excluir-se.” (Barthes)
A cada instante novas informações são espalhadas pelo mundo e os conceitos de espaço e tempo se dissipam na velocidade acelerada em que essas informações se espalham. Vivemos sob o olhar de lentes que nos vigiam 24 horas (câmeras fotográficas, celulares, webcams, câmeras de segurança...). Hoje qualquer pessoa pode gravar áudios e vídeos, fotografar e divulgar flagrantes da vida real para todo o mundo. A sociedade vive refém de uma cultura visual. Ao observar a cobertura jornalística fica fácil identificar esse processo. A mídia transforma os espectadores reféns de imagens, excita-os com os flagrantes, tratando-os apenas como uma massa de consumo da informação. Cada vez mais as notícias apelam para a espetacularização e para a superficialidade. Esses vídeos amadores ganham o mundo e acabam virando notícia, mesmo que o fato não seja mais novidade.
Essas duas características, espetacularização e superficialidade, do jornalismo atual são facilmente detectadas em coberturas jornalísticas da grande mídia. Como exemplo, toma-se o caso da estudante, de 20 anos, do curso de Turismo da Universidade Bandeirantes de São Bernardo do Campo, Geisy Arruda. A notícia da confusão armada por cerca de 800 estudantes toma proporções maiores a partir da divulgação de vídeos amadores pela internet. A cobertura jornalística baseia-se nos vídeos postados, veiculando o caso somente uma semana depois do ocorrido. Embora tendo abordado o tema de maneiras diferentes, não o contextualiza e nem o conecta com aspectos sociais pertinentes. Trata-o com superficialidade, aproveitando as cenas do “espetáculo” para manter a audiência.
O âncora do Jornal Nacional, um dos programas jornalísticos mais vistos pelos brasileiros, refere-se à estudante, na chamada da matéria do dia 09 de novembro, como “a aluna do mini-vestido”, sem citar o nome. A identidade da personagem é revelada no decorrer da matéria. Percebe-se aqui um certo grau de pré-julgamento e de exagero do uso da linguagem visando prender a atenção do telespectador.
“O reitor da Universidade Bandeirantes, em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, cancelou hoje a decisão de expulsar a aluna do mini-vestido”. (Willian Bonner - Chamada da matéria - JN do dia 09 de novembro de 2009)
Além de identificar a protagonista da ação como “a aluna do mini-vestido”, a matéria apenas relata os fatos e não aprofunda a discussão da expulsão ou não da aluna. O porta-voz da Universidade Bandeirantes é ouvido somente no dia seguinte (JN do dia 09 de novembro de 2009). Mesmo nessa outra matéria a abordagem é simplista, a preocupação se materializa apenas em dar voz à Uniban, sem sequer instigar o telespectador a analisar os fatos. Não há contextualização das implicações sociais do ato praticado pela Universidade e pelos estudantes contra a universitária.
Esse modo de fazer jornalismo também é verificado em outro programa da emissora, no Fantástico. Embora apresente características diferentes do Jornal Nacional (este é um programa jornalístico diário), com um maior tempo de produção e de veiculação das reportagens, o programa dominical também trata o assunto com superficialidade, pois não aborda todas as relações sociais que estão envolvidas no desenrolar do acontecimento. Não analisa o comportamento dos estudantes, os quais se portam como se estivessem na idade média, julgando a universitária num tribunal de inquisição e torturando-a. As reportagens levadas ao ar pelo Fantástico, nos dias 1º, 08 e 15 de novembro, abordam os fatos de maneira simplista, levando o desenrolar da matéria para o lado do entretenimento, do espetáculo.
Na primeira reportagem que foi ao ar no Fantástico, no dia 1º de novembro, os profissionais que trabalham a notícia trazem à público um outro fato ocorrido na Uniban, quando uma outra aluna foi vítima de espancamento por não ter aderido a uma manifestação estudantil contra o sistema de avaliação da universidade. Mas, mesmo com mais informações e subsídios em mãos, os jornalistas não discutem a questão da intolerância e da violência praticada dentro do ambiente acadêmico. Parece, ao telespectador, que estes acontecimentos são isolados e comuns à Uniban. As questões para aprofundamento do assunto seriam muitas, como: em outras universidades como reagem os estudantes em situações tensas, que possam gerar conflitos? O que leva um grupo social reagir de tal maneira, tão primitiva? Algumas perguntas ficam soltas, sem respostas.
A opção pela superficialidade na produção e edição do material que vai ao ar é visível. Nenhum sociólogo, cientista social ou psicólogo é ouvido pela reportagem para tentar analisar a atitude dos estudantes. Porém, nessa mesma reportagem, a consultora de moda, Gloria Kalil, é entrevistada para comentar sobre o vestido que a estudante usava no momento do tumulto na universidade. Gloria diz que a estudante não entende que a moda é um poderoso instrumento de informação, é uma linguagem. Aqui, como na matéria do dia 09 de novembro veiculada no JN, também está implícito um pré-julgamento à estudante, como se ela não fosse a vítima, mas sim a culpada pelo tumulto. Abaixo as palavras da consultora.
“Quando a gente põe uma roupa errada, que não combinou com o lugar que a gente foi, a gente acaba sendo lida de uma maneira que não era a que a gente gostaria.” (Gloria Kalil – em entrevista ao repórter Valmir Salaro - Fantástico do dia 1º de novembro de 2009)
Na segunda semana, no Fantástico do dia 8 de novembro, é informada a expulsão de Geisy da Uniban. Nessa matéria, outros atores sociais são ouvidos, um advogado, um educador e um aluno da universidade são entrevistados pelo repórter Valmir Salaro para falar sobre a decisão de expulsão da estudante. Todos são contrários à expulsão, mas nenhum aborda a punição aos estudantes agressores (a universidade optou por suspender das aulas, por alguns dias, os envolvidos. Punição menor que da vítima). O repórter apenas lê trechos da manifestação, escrita pela União Nacional dos Estudantes, pedindo o cancelamento da expulsão e o devido julgamento aos culpados.
“Em nota, a União Nacional dos Estudantes diz que a universidade é um espaço de diálogo, onde deveriam ser construídas relações sociais livres de opressões e preconceitos, dá sinais de que vive na era das cavernas. E exige que a matrícula da estudante seja mantida, que a universidade se retrate e que todos os agressores sejam julgados.” (Trecho da nota divulgada pela UNE, lido pelo repórter Valmir Salaro - Fantástico do dia 8 de novembro de 2009)
No programa Fantástico do dia 15 de novembro, a reportagem sobre o caso da estudante que foi agredida verbalmente, por cerca de 800 alunos, e por alguns dias expulsa da Universidade (decisão revista pela própria Uniban devido à repercussão e os protestos de outros estudantes pelo país) toma outro rumo. Na matéria feita pela repórter Renata Ceribelli, Geisy é mostrada como uma celebridade. As mudanças que a exposição à mídia trouxeram para a estudante são destacadas na matéria, principalmente abordando os benefícios que a “fama” proporciona, como, por exemplo, ganhar o megahair do cabeleireiro em troca de publicidade.
“Tentamos começar a entrevista. Agora é o cabeleireiro que precisa falar urgente. Em 20 dias, a mudança no visual é grande: É só olhar um pouco para Geisy para perceber o quanto ela já mudou. Está mais loira e com os cabelos maiores. Colocou um aplique de 70 centímetros de cabelo. Por quê? ‘Porque eu sempre tive vontade de ter um cabelão loiro. Teve um cabeleireiro que viu minha história e me deu de presente. Claro que eu não ia falar que não queria. De graça, é ruim hein’”. (Renata Ceribelli e Geisy Arruda - Fantástico do dia 15 de novembro de 2009)
Na casa da universitária, a repórter leva Geisy a mostrar e experimentar todos os vestidos curtos do guarda-roupa e a instiga a revelar o quanto é vaidosa. Falam sobre as futilidades que Geisy não abre mão, como o uso frequente de maquiagem e salto alto até para ir à padaria perto de casa. A repórter vai até a Uniban entrevista alguns estudantes que participaram ou acompanharam o tumulto e as agressões. Somente nesta terceira semana de veiculação do assunto, que o Fantástico se propõe a ouvir outros atores do acontecimento, mesmo que ainda sem analisar profundamente as atitudes de cada personagens. Na mesma matéria, a reportagem acompanha uma atriz, convidada pelo programa, a sair pelas ruas desfilando com um vestido parecido ao que Geisy usou. Todos os olhares e comentários são observados. Nesse momento, um analista social poderia ter analisado o comportamento das pessoas na rua, pois alguns tiveram reações parecidas aos estudantes que a insultaram. Para encerrar a matéria, a repórter acompanha a estudante em um passeio pelo shopping, para testar a “fama”.
As relações de gênero, sociais e comportamentais são pouco ou quase nunca abordadas nas matérias destacadas acima. Poderiam ser analisadas questões relacionadas ao preconceito masculino quanto ao estilo de se vestir das mulheres, pois, levando em conta as atitudes dos estudantes principalmente homens, as que usam roupas curtas estão provocando e incitando-os ao estupro. No âmbito das relações sociais e comportamentais as matérias poderiam abordar questões que se referem à convivência da juventude com a diferença, a tolerância e a aceitação do outro como indivíduo único. Além de analisar porquê existem regras sociais e comportamentais que ditam como as pessoas devem se vestir e se portar em determinados ambientes.
A desagregação de informações e a desarticulação dessas, a pouca profundidade com que os acontecimentos são trabalhados pelas coberturas e a espetacularização na busca pela simplificação são características de um modelo de jornalismo que está estabelecido em nossos dias. A professora de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Chile, Mar de Fontcuberta, nomeia esse modelo de Jornalismo Mosaico. Para os meios de comunicação é cômoda a posição de trabalhar dentro de um formato preestabelecido de produção, ofertando aos receptores sentidos simplificados, sem requerer uma interpretação. Nesse caso, os códigos emitidos são facilmente assimilados por esses receptores. Segundo o semiologista francês Roland Barthes, é nesse processo que os conjuntos ideológicos (os códigos, nem sempre perceptíveis) são absorvidos despercebidamente, o que possibilita e torna viável a persuasão. Por isso que, Pierre Bourdieu aponta como responsabilidade dos jornalistas a circulação dos inconscientes. Para ele, é através das palavras que os jornalistas produzem efeitos e exercem a violência simbólica, que se perpetua na e pela ignorância. A circulação desse inconsciente se dá na medida em que quem exerce essa violência o faz sem saber, assim como aquele que a sofre não percebe.
O jornalista, sociólogo e ex-aluno de Barthes, Ignácio Ramonet, defende que a mídia analise o próprio funcionamento, que se informe sobre a informação. Para Ramonet, “a mídia deve promover análises de seu próprio funcionamento, nem que seja para que se possa aprender como ela funciona, e para lembrar que ela não está a salvo da crítica. É uma das principais condições de confiança que os cidadãos lhe dedicam”. Cabe aos estudiosos do Jornalismo e também aos profissionais do meio pensarem sobre esse jornalismo que estamos praticando. Frente a evoluções aceleradas da sociedade, em todas as esferas, a simplificação com que o jornalismo transmite as informações chega na contra-mão dos anseios de uma sociedade cada vez mais complexa e sedenta por conhecimento.
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Por Alciane Nolibos Baccin, formada em Comunicação Social - Jornalismo, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), especialista em Comunicação Midiática pela mesma universidade e mestranda em Comunicação Social pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
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