sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Jornalismo e Multidão

Mesmo que a multidão1 se re-aproprie cada vez mais das tecnologias de comunicação e informação, ainda há o domínio das mídias de massa. Estas dizem respeito às grandes corporações de rádio, TV, jornal impresso, etc. É importante desvincular a multidão dos receptores dessas mídias. As massas são homogêneas; nelas as singularidades são esmaecidas em seu potencial. Félix Guattari diz que a massa é capturada, principalmente em sua subjetividade, pelas mídias dominantes2.

Já a multidão difere internamente e cultiva sua diferença, e resiste. Porém, a multidão não está de um lado como sujeito positivo e a massa de outro como receptáculo indefeso. Somos massa em nossa impotência, multidão em nossa criatividade, povo no momento em que nos rendemos ao Estado3.

O excesso de produção em redes a-centradas, que têm como princípios a colaboração e a comunicação, no ciberespaço possibilita à massa sujeitada se tornar multidão4. Essa multidão torna comum, compartilha, o que deveria ser de todos (no caso, bens imateriais) e cria relações horizontais, independentes de corporações e do Estado.

Segundo Henrique Antoun, inúmeros grupos na atualidade, baseados na internet, se tornam ingovernáveis, pois se organizam em redes autônomas. Pierre Lévy, na época em que a Internet estava sendo configurada, previu que ela permitiria democracia em tempo real. O conceito de multidão de Negri e Hardt diz também respeito a projeto de democracia: hoje a multidão teria a possibilidade de se autogovernar.

Quanto ao jornalismo, o tema proposto para essa crítica, como efeito da produção na internet, ele se torna mais flexível, deslocando a posição do receptor. Imagens amadoras são usadas no jornalismo de massa. Blogs se tornam fontes. O não-profissional é levado a criar notícias nos grandes meios. Isso deveria significar a ruptura com o discurso legitimado, com a representação.

Mesmo que alguns teóricos louvem essa flexibilização, nos questionamos sobre sua validade a partir de uma pergunta: é ação política? A política que tratamos aqui não é a do Estado ou do poder em rede global5, como também não é a política dos sujeitos historicamente legitimados, que desejam tomar o Estado, como a classe trabalhadora. A política aqui concerne às ações feitas pela multidão que a tiram do papel de massa sujeitada, indo de encontro aos poderes dominantes, em nível político, econômico, social, subjetivo, midiático, etc.

A flexibilização do jornalismo seria realmente política se conseguisse romper com lógicas como: centralizações, hierarquias, fins financeiros, discurso legitimador dos poderes; e isso só é possível fora das mídias e, aqui no caso, do jornalismo dominante6. Considerando o processo de midiatização da sociedade, em que lugar estaria esse fora? Há fora das mídias? Como ilhas puras, isoladas, não mais são possíveis, o que não é negativo, o interessante são os territórios singulares criados pela multidão dentro do processo.

Consideramos que a ruptura com as lógicas das mídias de massa, com o jornalismo,
com centros de poder que impõem relações, conformam subjetividades, bloqueiam a potência da vida é realizada por um tipo de jornalismo, que chamamos de jornalismo da multidão. Exemplo seria o Centro de Mídia Independente (CMI).

O CMI é coletivo de coletivos. Seus mecanismos mais visíveis são centenas de sites de notícias espalhados pelas grandes cidades do mundo. Cada site que compõe a rede é autônomo e é mantido por inúmeros coletivos que tomam decisões em conjunto. Também não há dependência de poderes exteriores. O CMI seria um tipo de atualização de democracia em espaço local. O site principal, internacional (http://www.indymedia.org/), não se sobrepõe aos outros. Ele funciona mais como divulgador da rede; permite informações necessárias para que novos centros sejam montados; reúne a história do CMI e conteúdos referentes ao seu funcionamento.

Há desejos compartilhados entre as singularidades – coletivos, sujeitos, sites. O desejo macropolítico diz respeito a uma outra realidade. Isso é visível no CMI por sua ligação com os movimentos por outra globalização. Ele nasceu em Seattle, 1999, como forma de reportar as manifestações contra o encontro da Organização Mundial do Comércio.

Já o desejo localizado no campo da comunicação concerne à criação de outra mídia. Esses desejos são contra-hegemônicos e não podem ser separados: as mídias desempenham seu papel na legitimação do Império, ou seja, sua re-apropriação deixa de ser ação local para se tornar imprescindível, dizendo respeito a todos. Criar outra mídia, romper com as lógicas das mídias de massa é se chocar com o poder do Império. Isto pode ser relacionado ao conceito de pós-mídia de Guattari: a re-apropriação das mídias pela multidão, sua ressingularização.

No jornalismo da multidão do CMI, a notícia é apenas mais um de seus elementos, não o mais importante. As notícias de maior destaque (os editoriais) são feitas pelos coletivos, as de menos, por qualquer um a partir de publicação aberta. Poderia ser dito que as notícias feitas pelos coletivos são mais importantes, ou seja, os participantes da organização do CMI teriam certo poder. Entretanto isso é questionável, pois é permitido, de certa forma, a qualquer um montar site ou coletivo, propor editoriais, participar das discussões do grupo em listas abertas
na internet.

Quanto às notícias da publicação aberta, elas não são feitas necessariamente por qualquer um. Em análise do CMI brasileiro (http://www.midiaindependente.org/) percebemos que há convergência de minorias diversas. Segundo Gilles Deleuze e Guattari, as minorias portam devir7 que se choca com modelos dominantes. O que acontece no momento em que elas (as minorias) deixam de ser marginalizadas e passam – ou podem passar – a se tornar protagonistas no jornalismo?8. As notícias dos dois tipos de publicação são, em boa parte, críticas9, tendo como conteúdo o choque com dispositivos de poder, além de tratar das questões da multidão, assim rompendo com os valores do jornalismo dominante que nega seu potencial político.

Os elementos que estruturam o jornalismo dominante negados pelo CMI são inúmeros. O jornalista como profissional. Relações hierárquicas, burocráticas. O jornal que após ser feito se torna estático. Modos de agir, códigos de conduta. A empresa que acumula toda a produção. Fins financeiros. A necessidade de captura do público que conforma o discurso. Salários. A busca idealizada da verdade e imparcialidade (ou o discurso que prega essa idealização).

No CMI não há modos de agir, aliás, como organização de resistência, ele tenta criar ambiente em que as singularidades tenham movimentos livres10. Os participantes e colaboradores não são profissionais, mas também não são amadores – o CMI não é hobby. A produção não gira em torno de fins como salários, acúmulo financeiro, ela acontece a partir de desejos de multidão. Quanto à materialidade dos
sites, não há como prever a forma que ela irá tomar, pois não há controle das notícias da publicação aberta. Por isso a pergunta: o CMI faz jornalismo ou outra coisa? Mas isso importa?

Este ensaio deveria ser uma crítica das práticas jornalísticas. Analisamos o jornalismo da multidão do CMI com a intenção de criticar o jornalismo dominante. Nossas considerações finais: o jornalismo diferenciado não é o jornalismo mais colaborativo, mais flexível, das grandes corporações. Entre este jornalismo e o tradicional só há diferenças de grau, não de natureza; as lógicas se mantêm. Entretanto quando o jornalismo realmente se diferencia, é produzido um plano composto de elementos heterogêneos. No caso do jornalismo da multidão do CMI, jornalismo, cibercultura, resistências, multidão, política, biopolítica, compõem esse plano. O jornalismo da multidão é associado ao jornalismo por mero hábito, ele é sim forma de resistência, nas palavras de Foucault, insubmissão voluntária.

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Por Diego Carvalho, formado em Jornalismo pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, mestrando em Comunicação Social na UNISINOS.

1 A multidão é o sujeito político da atualidade conceituado por Antonio Negri e Michael Hardt. Fazem parte dela todos os governados e explorados e as resistências ao poder global. Sua forma é a de rede preenchida por singularidades que agem a partir do que elas têm em comum.

2 É importante considerar que Guattari, no caso, não trabalha apenas com conceitos negativos. Para ele, há tipos de resistências referentes à captura da subjetividade, o que ele nomeou de revolução molecular.

3 Para Hobbes, o povo é uno, representa uma vontade única. O povo está associado diretamente ao Estado, se for Estado, é povo, mas se faltar o Estado, não pode haver povo.

4 Aqui não negamos o conceito de mediações de Jesus Barbero. Porém, trabalhamos com a hipótese de que o usuário se torna realmente ativo, faz resistência, no momento em que ele deixa de ser receptor e passa a ser produtor. Entretanto, como será visto, não é qualquer tipo de produção que consideramos válidas politicamente.

5 O Império é o poder global atual. Sua forma também é de rede, esta composta pelos Estados-nação dominantes, administrações supranacionais e organizações não-governamentais. Ele difere do Imperialismo centrado no Estado-nação

6 Para Peter Pál Pelbart, no ambiente de trabalho acontecem formas de insubmissão. Deleuze e Guattari dizem que a insubmissão é possível na burocracia. Ou seja, há exterioridade dentro de dispositivos de poder. Também trabalhamos com a premissa de que mesmo o jornalismo hegemônico, por ser feito pela multidão – ela é o agente produtivo do Império –, possibilita potência biopolítica.

7 Devir, como conceito de Deleuze e Guattari, concerne à experimentação de processo que escapa de estados bem definidos, modelos dominantes, divididos binariamente: classes (dominante e sujeitada), sexos (homem e mulher), raça (brancos e outros), idades (adulto e criança). Os devires dizem respeito aos micro-sexos, às micro-raças, a uma outra infância que experimentamos. Essa experimentação não se dá no nível do imaginário, dos sonhos, mas concerne a territórios singulares que criamos.

8 Foucault e Deleuze participaram do G.I.P. (Grupo de informação sobre as Prisões) no início dos anos setenta. Um dos objetivos era possibilitar que presos pudessem desenvolver suas próprias teorias, os tornando independentes da mediação do intelectual. Consideramos que há semelhança com o que ocorre no jornalismo da multidão: a mediação do jornalista profissional e da empresa é eliminada, permitindo a autonomia da multidão.

9 Para Foucault, a crítica, a atitude crítica, é a arte de não ser governado, tem a função de desassujeitamento, é forma de insubmissão frente à arte de governar

10 A mobilidade é de extrema importância para a multidão. Isso é visto nos movimentos de migração: a multidão deseja habitar o mundo livremente; ela o percorre em busca de outra realidade.

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