sábado, 23 de janeiro de 2010

As sombras de Lugo

Surgindo como novidade no cenário político latino-americano, Fernando Lugo foi ganhando notoriedade na instância midiática brasileira. O fato se deve não apenas a sua singular trajetória, ligada à igreja católica e a movimentos sociais populares, mas também ao conteúdo de suas principais propostas, algumas com conseqüências diretas para as relações bilaterais com Brasil. Os episódios mais recentes envolvendo o chefe de Estado paraguaio demonstram um cenário de incertezas e instabilidade, ao menos é essa a representação da maior parte dos meios de comunicação brasileiros e latino-americanos.

Lugo não goza de boa imagem na mídia hegemônica nacional que, em geral, alia a sua figura a fatos negativos e a lideranças políticas latino-americanas concebidas como anacrônicas e populistas, a exemplo dos presidentes Evo Morales e Hugo Chávez, respectivamente da Bolívia e da Venezuela. Ainda, há o tema da concentração de migrantes brasileiros no Paraguai, o qual explicita um quadro marcado pela permeabilidade da mídia brasileira no território paraguaio, levando os seus conteúdos, a sua visão dos fatos para uma audiência híbrida¹.

Depois de 62 anos de comando do Partido Colorado, no dia 20 de abril de 2008, o Paraguai assiste a uma verdadeira alternância de poder e se enche de esperança, por meio da chegada do bispo Fernando Lugo as mais altas funções do Estado. Em uma coligação sustentada pela Aliança Patriótica para a Mudança (APM), que congrega dez partidos políticos e vinte movimentos sociais articulados sob o Movimento Popular Tekojoja, configurando-se como um caso inédito na turbulenta história política do Paraguai.

Passado mais de um ano de sua vitória no pleito eleitoral paraguaio, o bispo que virou presidente se vê imerso em uma conjuntura marcada por dúvidas, desconfianças e isolamento. As notícias mais recentes vindas do país vizinho não apenas demonstram tal quadro, mas também dão conta da insatisfação dos partidos tradicionais do Paraguai, com o caráter popular e arrojado das ações de Lugo, levando a oposição a pronunciar abertamente o seu desejo de dar cabo ao governo do sacerdote, seguindo caminhos semelhantes ao de Honduras. E a mídia brasileira, como se comporta diante desses acontecimentos, como os retrata e os contextualiza? Busca contextualizá-los de fato, mantendo uma postura crítica, para além da objetivação, apresentando e conduzindo os acontecimentos de maneira ampla, integral e responsável?

Mais do que isso, construindo um modo de observar os fatos do presente, de forma a se distanciar de visões preconcebidas e superficiais, trazendo as cosmovisões dos que estão à margem e raramente são ouvidos? Enfim, trata-se de construir abordagens que contemplem realidades complexas, a exemplo do atual contexto de mudanças circunstanciais que vem ocorrendo em solo paraguaio.

Como Lugo tem sido apresentado pelas mídias?
No que tange aos antecedentes que levaram Lugo ao poder, visualizamos um importante componente da realidade observada – o Movimento Tekojoja, que significa “viver em igualdade”, no idioma Guarani, falado por grande parte da população paraguaia. Para além da coalizão de diversos partidos, esse movimento, exerce significativa influência nos rumos do governo paraguaio. Pertence a ele a formulação das diretrizes que fazem parte do programa de governo de Lugo e a orientação dos movimentos populares que compõem a base de apoio, como o campesino.

Assim, conseguimos dimensionar algumas das ações políticas empreendidas pelo governo Lugo, num cenário marcado pela heterogeneidade e a desconfiança, devido à composição das diferentes forças e partidos que fazem parte da APM, fazendo com que o governo paraguaio necessite do apoio popular para implementar as suas ações. Além disso, o presidente não possui a maioria no congresso e não dispõe de uma boa relação com o vice.

No enfoque dado pelas mídias brasileiras na construção dos acontecimentos relacionados ao presidente do Paraguai, observamos a recorrência de duas abordagens distintas – o hiperprotagonismo e o desmascaramento. Desse modo, as notícias enfocam ora a figura do presidente, ora o que estaria por trás das ações do chefe de Estado, seguindo respectivamente esses dois parâmetros.

Quando o foco está na figura de Lugo, há constantemente um movimento que ressalta a sua origem religiosa e outro de atrelá-lo a líderes populistas como Hugo Chavéz, Evo Morales e Rafael Correa. Na perspectiva do desmascaramento, ocorre uma abordagem centrada nos supostos interesses que levariam Lugo a tomar certas decisões e empreender determinadas ações que, na construção das mídias brasileiras, quase sempre ferem os interesses nacionais do Brasil.

Diante desse quadro, visualiza-se uma abordagem rasa, desconexa dos aspectos sociais, culturais e políticos que permeiam o presente do Paraguai. Sobretudo, construída com a finalidade de promover uma crítica à política externa do governo brasileiro que, na ótica dos meios de comunicação, seria frouxa e subserviente aos países vizinhos, desde o episódio da nacionalização dos hidrocarbonetos bolivianos. Nesse sentido, o governo brasileiro, segundo a mídia nacional, estaria distanciando o país da condição de nação líder da América Latina e deixando esse papel nas mãos de Hugo Chávez.

Assim, Lugo caminha a contrapelo do modelo neoliberal de reforma do Estado e promove ações “populistas” e “anacrônicas”, como a defesa de uma reforma agrária e o embate pela renegociação do Tratado de Itaipu com o Brasil, vizinho e parceiro de longa data. Segundo Maurício Thuswohl, em artigo publicado na Agência Carta Maior, algumas medidas empreendidas pelo novo governo paraguaio para, por exemplo, combater o contrabando e a sonegação de impostos, atingiram em cheio os interesses de setores do legislativo e do judiciário, além de, por incrível que pareça, sofrerem oposição de setores da mídia do Paraguai.

Diante disso, o jornalista observa que o governo brasileiro deve tratar o Paraguai como um parceiro/sócio e não como um pátio dos fundos, postura recorrente até hoje e defendida por significativa parcela da grande mídia do país e pelos partidos tradicionais.

Em geral, Lugo faz um governo dicotômico, levando internamente a avanços nas políticas sociais e no combate à corrupção e, externamente, a conquistas históricas como o acordo com o Brasil e a mediação da contenda entre Colômbia, Equador e Venezuela. No entanto, para alguns movimentos populares, há mais dúvidas que certezas quanto ao governo Lugo.

Justamente essas dúvidas e incertezas compõem o mosaico pelo qual a mídia brasileira prefere apresentar o presidente do Paraguai, caracterizando-o como um governante populista, nacionalista, intempestivo, problemático. Ou ainda pior, explicitando estereótipos e preconceitos que povoam o imaginário brasileiro em relação ao Paraguai, como a falsificação. Acarretando na substituição das questões ideológicas e históricas do debate político pela encenação, bem como do conteúdo pela forma. Enfim, distanciando-se de uma abordagem contextualizada e ampla da complexidade do atual contexto do Paraguai.

Que Paraguai é esse retratado pelas mídias latino-americanas?
Segundo a abordagem das mídias brasileiras, o presente, no escopo latino-americano, apresenta-se permeado pelas sombras do passado. Por um lado, as sombras do populismo, por outro, as do autoritarismo. E, como pano de fundo, o imperialismo. Tal panorama é visível nos acontecimentos ocorridos recentemente em Honduras – deposição do presidente eleito, legitimação de um golpe de Estado, que pode se espalhar por outros países da região.

Observa-se em curso uma articulação dos partidos tradicionais na América Latina para recuperar o terreno perdido nos últimos anos pela vitória de governos de cunho popular. O primeiro movimento ocorreu em Honduras. O Paraguai pode ser o próximo alvo, contando ainda com a possibilidade de uma vitória eleitoral da direita chilena.
No Paraguai, os recentes acontecimentos apresentam as possibilidades de um golpe de Estado, como estratégia de combate a um governo com características populares, que propõem reformulações profundas no Estado, a exemplo da realização de uma reforma agrária integral. Inclusive com episódios como ameaças de bomba, com uma realmente tendo explodido no Palácio de Justiça, sem ferir ninguém.

Da mesma forma, as falas de políticos da oposição no Paraguai têm sido constantes, acenando para a possibilidade de um processo golpista semelhante ao que ocorreu em Honduras. Em entrevista concedida a uma rádio argentina, o senador liberal Alfredo Luís Jaeggli defendeu os golpistas hondurenhos e disse que Lugo estaria “atrapalhando as reformas modernizantes” no país. Na ótica crítica do cientista político argentino, Atilio Baron, o presente da América Latina, demonstra-se marcado pela “volta dos Estados Unidos à sua tradicional política de apoio aos golpes militares e aos regimes autoritários afins com os interesses imperiais”.

É nesse cenário de crise política da América Latina, de governos populistas, de democracias restritas, que o contexto atual do Paraguai e de seu presidente são retratados pela mídia brasileira. Um cenário sombrio para a região, permeado de incertezas e desafios. Seria esse mesmo o presente do Paraguai? Mesmo depois da quebra da hegemonia do poder do Partido Colorado e do surgimento no cenário político de um novo ator, sustentado por uma coalização de movimentos sociais e partidos políticos de centro-esquerda e centro-direita?

Na verdade, apenas a ponta do iceberg da complexa realidade social do Paraguai foi apresentada pela mídia brasileira. A exemplo de matérias da revista Época e do jornal Folha de São Paulo, que se reservaram a noticiar apenas a troca de comando nas forças armadas do país vizinho, promovida por Fernando Lugo. Sem, contudo, refletir sobre a conjuntura que levou o presidente paraguaio a tomar essa decisão. Diferente de jornais argentinos, como o Página 12 e o Clarín, que buscaram demonstrar o clima de instabilidade que ronda o Paraguai.

Percebemos que faltam algumas peças no mosaico do presente paraguaio trazido pela mídia brasileira. Peças que não obstante, oferecem elementos interessantes para pensar as lógicas e os contextos desse presente, visualizando-o de forma ampla, problematizando e atentando para fatores históricos e simbólicos. Ainda, essa maneira de abordar o presente do espaço latino-americano, de forma distante e pouco reflexiva, tem sido construída constantemente pela mídia brasileira e pouco contribui para a compreensão de temas relevantes, como a integração nacional e as ações afirmativas nesse sentido, como é o caso do Mercosul.

A crítica, observada enquanto um movimento de deslocamento, para além de uma visão maniqueísta entre certo e errado ou entre positivo e negativo, compreende as condições do processo de construção dos acontecimentos, ou seja, dos contextos que o envolvem. Nesse sentido, a crítica das práticas jornalísticas surge como uma atividade de observação e análise do jornalismo enquanto campo de construção dos acontecimentos, que busca “mostrar o que é objetivado, como os acontecimentos são objetivados e como aparecem e o que permanece subjacente à materialidade discursiva” (MAROCCO, 2008, p. 88).

O presente surge assim como espaço privilegiado para a crítica, pois se constitui de um somatório de estratégias de poder e saber, de regimes de verdade que se expressam por meio da codificação do social, das relações de poder, de aparelhos institucionais. Dessa forma, o analista, na condição de crítico das práticas jornalísticas, deveria atentar para as questões da atualidade, ou seja, para o momento histórico que vivencia, enfim, uma análise crítica dos fatos do presente na ordem dos acontecimentos históricos.

Diversos autores² buscam pensar sobre modos de produção jornalística, mais especificamente, procuram refletir sobre as formas como o jornalismo constrói as notícias, aborda os fatos, apresenta a realidade. Assim, a crítica das práticas jornalísticas está ligada a uma concepção clara sobre essas mesmas práticas, que dizem respeito a um modo particular de construir a realidade social. Nesse sentido, esse conjunto de autores demonstra a necessidade de atentar para o modo pelo qual os meios de comunicação decidem o que vão dizer e por quê, uma vez que o principal papel do jornalismo é formar e reformar diariamente o presente social, que servirá de referência para a interpretação e para os comentários do público.

Assim, uma crítica permite tomar o acontecimento, enquanto processo amplo e diversificado, atentando para as suas relações com a história e memória, por exemplo. Em outras palavras, uma concepção crítica das práticas jornalísticas permite, a grosso modo, busca entender porque uma notícia é publicada e comentada no lugar de outra, que consequentemente é excluída. Enfim, de que maneira o jornalismo constrói e relata aquilo que o público carece de pensar, apreender, acompanhar.
Da mesma forma, a problematização desses autores, evidencia a necessidade de uma observação crítica do jornalismo, ancorada em teorias que permitam uma visão global e ampla das ações e estratégias do jornalismo na apresentação e construção da realidade social.
_________________________________________________________________________
Por Rafael Foletto - Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. E-mail – rafoletto@gmail.com.


¹A dimensão dessa inserção pode ser visualizada em um dos episódios do especial “A Conquista do Oeste”, da RBS TV, que narra a vida, as histórias, o dia-a-dia de agricultores gaúchos no Paraguai.. O produto, conforme Urbim (2006), obteve recorde de vendas com mais de 11 mil unidades comercializadas (LISBÔA FILHO, 2009).
²Como exemplo desses autores podemos citar: Fontcuberta (2006), Gomis (1991), Marcondes Filho (2002), Prado (2002) e Ramonet (2001).
Leia mais...

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Jornalismo e Multidão

Mesmo que a multidão1 se re-aproprie cada vez mais das tecnologias de comunicação e informação, ainda há o domínio das mídias de massa. Estas dizem respeito às grandes corporações de rádio, TV, jornal impresso, etc. É importante desvincular a multidão dos receptores dessas mídias. As massas são homogêneas; nelas as singularidades são esmaecidas em seu potencial. Félix Guattari diz que a massa é capturada, principalmente em sua subjetividade, pelas mídias dominantes2.

Já a multidão difere internamente e cultiva sua diferença, e resiste. Porém, a multidão não está de um lado como sujeito positivo e a massa de outro como receptáculo indefeso. Somos massa em nossa impotência, multidão em nossa criatividade, povo no momento em que nos rendemos ao Estado3.

O excesso de produção em redes a-centradas, que têm como princípios a colaboração e a comunicação, no ciberespaço possibilita à massa sujeitada se tornar multidão4. Essa multidão torna comum, compartilha, o que deveria ser de todos (no caso, bens imateriais) e cria relações horizontais, independentes de corporações e do Estado.

Segundo Henrique Antoun, inúmeros grupos na atualidade, baseados na internet, se tornam ingovernáveis, pois se organizam em redes autônomas. Pierre Lévy, na época em que a Internet estava sendo configurada, previu que ela permitiria democracia em tempo real. O conceito de multidão de Negri e Hardt diz também respeito a projeto de democracia: hoje a multidão teria a possibilidade de se autogovernar.

Quanto ao jornalismo, o tema proposto para essa crítica, como efeito da produção na internet, ele se torna mais flexível, deslocando a posição do receptor. Imagens amadoras são usadas no jornalismo de massa. Blogs se tornam fontes. O não-profissional é levado a criar notícias nos grandes meios. Isso deveria significar a ruptura com o discurso legitimado, com a representação.

Mesmo que alguns teóricos louvem essa flexibilização, nos questionamos sobre sua validade a partir de uma pergunta: é ação política? A política que tratamos aqui não é a do Estado ou do poder em rede global5, como também não é a política dos sujeitos historicamente legitimados, que desejam tomar o Estado, como a classe trabalhadora. A política aqui concerne às ações feitas pela multidão que a tiram do papel de massa sujeitada, indo de encontro aos poderes dominantes, em nível político, econômico, social, subjetivo, midiático, etc.

A flexibilização do jornalismo seria realmente política se conseguisse romper com lógicas como: centralizações, hierarquias, fins financeiros, discurso legitimador dos poderes; e isso só é possível fora das mídias e, aqui no caso, do jornalismo dominante6. Considerando o processo de midiatização da sociedade, em que lugar estaria esse fora? Há fora das mídias? Como ilhas puras, isoladas, não mais são possíveis, o que não é negativo, o interessante são os territórios singulares criados pela multidão dentro do processo.

Consideramos que a ruptura com as lógicas das mídias de massa, com o jornalismo,
com centros de poder que impõem relações, conformam subjetividades, bloqueiam a potência da vida é realizada por um tipo de jornalismo, que chamamos de jornalismo da multidão. Exemplo seria o Centro de Mídia Independente (CMI).

O CMI é coletivo de coletivos. Seus mecanismos mais visíveis são centenas de sites de notícias espalhados pelas grandes cidades do mundo. Cada site que compõe a rede é autônomo e é mantido por inúmeros coletivos que tomam decisões em conjunto. Também não há dependência de poderes exteriores. O CMI seria um tipo de atualização de democracia em espaço local. O site principal, internacional (http://www.indymedia.org/), não se sobrepõe aos outros. Ele funciona mais como divulgador da rede; permite informações necessárias para que novos centros sejam montados; reúne a história do CMI e conteúdos referentes ao seu funcionamento.

Há desejos compartilhados entre as singularidades – coletivos, sujeitos, sites. O desejo macropolítico diz respeito a uma outra realidade. Isso é visível no CMI por sua ligação com os movimentos por outra globalização. Ele nasceu em Seattle, 1999, como forma de reportar as manifestações contra o encontro da Organização Mundial do Comércio.

Já o desejo localizado no campo da comunicação concerne à criação de outra mídia. Esses desejos são contra-hegemônicos e não podem ser separados: as mídias desempenham seu papel na legitimação do Império, ou seja, sua re-apropriação deixa de ser ação local para se tornar imprescindível, dizendo respeito a todos. Criar outra mídia, romper com as lógicas das mídias de massa é se chocar com o poder do Império. Isto pode ser relacionado ao conceito de pós-mídia de Guattari: a re-apropriação das mídias pela multidão, sua ressingularização.

No jornalismo da multidão do CMI, a notícia é apenas mais um de seus elementos, não o mais importante. As notícias de maior destaque (os editoriais) são feitas pelos coletivos, as de menos, por qualquer um a partir de publicação aberta. Poderia ser dito que as notícias feitas pelos coletivos são mais importantes, ou seja, os participantes da organização do CMI teriam certo poder. Entretanto isso é questionável, pois é permitido, de certa forma, a qualquer um montar site ou coletivo, propor editoriais, participar das discussões do grupo em listas abertas
na internet.

Quanto às notícias da publicação aberta, elas não são feitas necessariamente por qualquer um. Em análise do CMI brasileiro (http://www.midiaindependente.org/) percebemos que há convergência de minorias diversas. Segundo Gilles Deleuze e Guattari, as minorias portam devir7 que se choca com modelos dominantes. O que acontece no momento em que elas (as minorias) deixam de ser marginalizadas e passam – ou podem passar – a se tornar protagonistas no jornalismo?8. As notícias dos dois tipos de publicação são, em boa parte, críticas9, tendo como conteúdo o choque com dispositivos de poder, além de tratar das questões da multidão, assim rompendo com os valores do jornalismo dominante que nega seu potencial político.

Os elementos que estruturam o jornalismo dominante negados pelo CMI são inúmeros. O jornalista como profissional. Relações hierárquicas, burocráticas. O jornal que após ser feito se torna estático. Modos de agir, códigos de conduta. A empresa que acumula toda a produção. Fins financeiros. A necessidade de captura do público que conforma o discurso. Salários. A busca idealizada da verdade e imparcialidade (ou o discurso que prega essa idealização).

No CMI não há modos de agir, aliás, como organização de resistência, ele tenta criar ambiente em que as singularidades tenham movimentos livres10. Os participantes e colaboradores não são profissionais, mas também não são amadores – o CMI não é hobby. A produção não gira em torno de fins como salários, acúmulo financeiro, ela acontece a partir de desejos de multidão. Quanto à materialidade dos
sites, não há como prever a forma que ela irá tomar, pois não há controle das notícias da publicação aberta. Por isso a pergunta: o CMI faz jornalismo ou outra coisa? Mas isso importa?

Este ensaio deveria ser uma crítica das práticas jornalísticas. Analisamos o jornalismo da multidão do CMI com a intenção de criticar o jornalismo dominante. Nossas considerações finais: o jornalismo diferenciado não é o jornalismo mais colaborativo, mais flexível, das grandes corporações. Entre este jornalismo e o tradicional só há diferenças de grau, não de natureza; as lógicas se mantêm. Entretanto quando o jornalismo realmente se diferencia, é produzido um plano composto de elementos heterogêneos. No caso do jornalismo da multidão do CMI, jornalismo, cibercultura, resistências, multidão, política, biopolítica, compõem esse plano. O jornalismo da multidão é associado ao jornalismo por mero hábito, ele é sim forma de resistência, nas palavras de Foucault, insubmissão voluntária.

_____________________________________________________
Por Diego Carvalho, formado em Jornalismo pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, mestrando em Comunicação Social na UNISINOS.

1 A multidão é o sujeito político da atualidade conceituado por Antonio Negri e Michael Hardt. Fazem parte dela todos os governados e explorados e as resistências ao poder global. Sua forma é a de rede preenchida por singularidades que agem a partir do que elas têm em comum.

2 É importante considerar que Guattari, no caso, não trabalha apenas com conceitos negativos. Para ele, há tipos de resistências referentes à captura da subjetividade, o que ele nomeou de revolução molecular.

3 Para Hobbes, o povo é uno, representa uma vontade única. O povo está associado diretamente ao Estado, se for Estado, é povo, mas se faltar o Estado, não pode haver povo.

4 Aqui não negamos o conceito de mediações de Jesus Barbero. Porém, trabalhamos com a hipótese de que o usuário se torna realmente ativo, faz resistência, no momento em que ele deixa de ser receptor e passa a ser produtor. Entretanto, como será visto, não é qualquer tipo de produção que consideramos válidas politicamente.

5 O Império é o poder global atual. Sua forma também é de rede, esta composta pelos Estados-nação dominantes, administrações supranacionais e organizações não-governamentais. Ele difere do Imperialismo centrado no Estado-nação

6 Para Peter Pál Pelbart, no ambiente de trabalho acontecem formas de insubmissão. Deleuze e Guattari dizem que a insubmissão é possível na burocracia. Ou seja, há exterioridade dentro de dispositivos de poder. Também trabalhamos com a premissa de que mesmo o jornalismo hegemônico, por ser feito pela multidão – ela é o agente produtivo do Império –, possibilita potência biopolítica.

7 Devir, como conceito de Deleuze e Guattari, concerne à experimentação de processo que escapa de estados bem definidos, modelos dominantes, divididos binariamente: classes (dominante e sujeitada), sexos (homem e mulher), raça (brancos e outros), idades (adulto e criança). Os devires dizem respeito aos micro-sexos, às micro-raças, a uma outra infância que experimentamos. Essa experimentação não se dá no nível do imaginário, dos sonhos, mas concerne a territórios singulares que criamos.

8 Foucault e Deleuze participaram do G.I.P. (Grupo de informação sobre as Prisões) no início dos anos setenta. Um dos objetivos era possibilitar que presos pudessem desenvolver suas próprias teorias, os tornando independentes da mediação do intelectual. Consideramos que há semelhança com o que ocorre no jornalismo da multidão: a mediação do jornalista profissional e da empresa é eliminada, permitindo a autonomia da multidão.

9 Para Foucault, a crítica, a atitude crítica, é a arte de não ser governado, tem a função de desassujeitamento, é forma de insubmissão frente à arte de governar

10 A mobilidade é de extrema importância para a multidão. Isso é visto nos movimentos de migração: a multidão deseja habitar o mundo livremente; ela o percorre em busca de outra realidade.
Leia mais...

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Radiojornalismo simplista demais

O entendimento dos caminhos do rádio e do radiojornalismo só é possível de ser vislumbrado dentro das transformações que ocorrem neste início de século XXI. Numa sociedade em processo de midiatização o veículo disputa com as novas mídias mais do que espaço para a conquista da audiência. Disputa sua sobrevivência com meio de comunicação, confirmando a idéia de que nenhum veículo desaparece diante do surgimento de outro.

As emissoras, de uma forma geral as de freqüência modulada (AM) se dedicam parcial ou totalmente ao jornalismo. Neste aspecto, considerado como importante fonte de informação, tendo como um dos motivos a sua fácil inserção no âmbito social, o jornalismo praticado nas emissoras tem históricas consequências diretamente perceptíveis na humanidade. É o caso de “Guerra dos mundos”, radiograma dirigido por Orson Welles e veiculado pela cadeia de rádios CBS, no dia 30 de outubro de 1938, nos Estados Unidos. O programa foi capaz de desencadear uma onda de pânico nos EUA, com mortes por suicídio e acidentes em série, na desenfreada fuga de uma suposta invasão da terra por marcianos. O efeito de realidade das mensagens levadas ao ar se deu de forma convincente por meio de uma cobertura jornalística.

Mas este exemplo de jornalismo praticado na primeira metade do século passado parece não dar mais conta da complexidade da sociedade atual. As empresas jornalísticas enfrentam novos desafios a partir de duas perspectivas: a do rendimento econômico e da inovação tecnológica. Novas máquinas, novos planejamentos gráficos, lançamento de edições eletrônicas e interatividade. São apenas algumas das estratégias para fidelizar o receptor.

Mas muitos dos empresários não foram capazes de entender que a profunda transformação provocada pelos novos fenômenos da sociedadade em midiatização implicou no nascimento de uma nova etapa. Os meios de comunicação se configuram como elemento-chave na atualidade. Por sua vez, uma das principais características neste novo ambiente a que se está referindo é uma sociedade acontecedora, em que não existem nem decisões nem acontecimentos isolados. Todos os acontecimentos têm causas e efeitos que podem produzir-se muito distantes, mas que interconectam-se à frente, numa rede mundial de interdependências.

Na desesperada busca pela audiência, modificar formatos e oferecer novos serviços não foram soluções capazes de dar conta da demanda cada vez mais exigente, em busca de informações contextualizadas e que sejam capazes de remeter a um amplo entendimento de todas as dimensões dos fatos que envolvem sua vida. Quem problematiza esta questão é a professora de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Chile, Mar de Fontcuberta. Para ela, uma das exigências da sociedade é a capacidade de previsão do presente. E esse presente não pode ser enxergado com um olhar simplista, mas com uma abordagem fundamentada de maneira teórica, interpretativa e antecipatória.

Diante dos problemas apontados por uma sociedade em que os fenômenos sociais são cada vez mais interligados, quando as ações empreendidas para encontrar uma solução a um tema podem provocar a aparição de problemas piores daquele que se pretende solucionar, a resposta que os campos da ciência, política e economia dão seria a simplificação. E este entendimento pode ser estendido às práticas jornalísticas.
Segundo Fontcuberta, o princípio da simplificação “o bien separa lo que esta ligado (disjunción) o bien unifica lo que es diverso (reducción). Y por lo tanto, distorsiona”. A separação e a redução estão presentes na maioria das pautas jornalísticas configurando o que Abrahan Moles denomina de cultura mosaico para se referir aos conteúdos oferecidos pela mídia que podem ser definidos como fragmentados, atomizados e publicados sem nenhuma hierarquização.

A desagregação de informações, da explicação dos conteúdos mediante a simplificação, a busca por responder a um formato preestabelecido e, ainda, a construção de pautas sem articulação com outras são marcas do jornalismo atual e que, de acordo com a professora chilena podem ser denominado de Jornalismo Mosaico.

Para compreender melhor a perspectiva de entendimento do jornalismo praticado na atualidade, partindo do conceito de Jornalismo Mosaico apresentado por Fontcuberta e que sustenta a avaliação das práticas do jornalismo na atualidade, partir-se-á para a descrição de um exemplo o qual não apenas configura uma realidade pontual, mas pode ilustrar bem o que se vislumbra em diversos meios de comunicação.
O que se propõe aqui é a análise de uma síntese noticiosa de uma emissora localizada no interior do Rio Grande do Sul, na cidade de Santa Maria – RS. A escolha do programa e da emissora se deu por causa da representatividade que o mesmo tem para a comunidade local, que conta com 13 empresas de radiodifusão.

O programa, que tem em média 5 minutos, vai ao ar de hora em hora. O roteiro conta com espaços para notícias locais e nacionais de diferentes temas. Também o espaço da Previsão do Tempo para a região central do RS. No entanto, este não é produzido pelos profissionais da emissora. É um boletim gravado em São Paulo. A descontextualização dos acontecimentos narrados (marca do Jornalismo Mosaico) pode ser vislumbrada numa transcrição (abaixo) de parte do programa levado ao ar no dia 05 de dezembro de 2009, às 10 e 30 da manhã.

- A campanha de Natal do Centro de Ciências Rurais está de volta./ Ela vai arrecadar brinquedos em bom estado de conservação até o dia 16 e doar às crianças da escola Celina de Moraes.//

- Programação de Natal de Santa Maria contará com onze eventos até o dia 23./A praça Saldanha Marinho, no calçadão, deverá abrigar diversas apresentações, todas com enfoque natalino.//

Mesmo sendo o programa analisado uma síntese noticiosa, com características de agilidade e concisão textual (marcas deste gênero radiofônico), a simplificação do texto radiojornalístico pode causar a distorção dos sentidos dados pelo receptor. No primeiro exemplo, o produtor do texto deve ter presumido que os ouvintes sabem o que é o Centro de Ciências Rurais, deixando de informar, para melhor contextualização da informação veiculada, que a entidade citada pertence à Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Outra informação interessante que deveria aparecer no texto, mesmo que numa única frase, é da maneira como a comunidade poderia participar da campanha e o local de arrecadação dos brinquedos.

Já no segundo exemplo citado acima também desqualifica o radiojornalísmo produzido pela emissora em estudo. Sinal de falhas na prática jornalística podem ser apontado quando a notícia veiculada, baseada no pressuposto de que apenas informar o número de eventos e o local de ocorrência dos mesmos, sem mesmo citar quais serão, parece ser generalista demais e, por sua vez, é simplista a ponto de pouco informar o ouvinte sintonizado. O uso de termos como deverá e diversas nada contribui para um entendimento contextualizado sobre o (s) acontecimento (s).

Um diagnóstico sobre o contéudo citado acima aponta características vislumbradas pela professora Fontcuberta. O que há é uma explicação do conteúdo (os acontecimentos) mediante a simplificação, respondendo a um formato pré-estabelecido de construção da notícia e de roteirização do programa. Estes indícios demonstram que a produção jornalística funciona dentro de uma lógica sistêmica fechada (regrada), onde não há articulação com fatos anteriores e posteriores ao (s) acontecimento (s) e, por fim, mediante um olhar mais subjetivo, pode-se dizer que a emissora concebe a sua audiência como um simples grupo de consumidores de informação.

As considerações feitas acima poderiam se estender a outros exemplos da cultura mosaico lançando seus tentáculos sobre diversas redações jornalísticas. Dentro da lógica comercial a que os meios de comunicação estão submetidos, a sustentação dos mesmos se dará apenas a partir do empenho na qualificação das práticas jornalísticas. Nessas condições, desde já se sugere novas formas de gerenciamento.

As sugestões partem do entendimento de um processo de produção jornalística a partir de um sistema. Explico. Um sistema pode ser compreendido com uma totalidade complexa de elementos compostos por diferentes partes que estão inter-relacionadas e que interagem em uma organização. Esse conhecimento, cabe fazer a referência, deve ser atribuído ao que Fontcuberta chama de Jornalismo Sistema.

A lógica produtiva passa pelo desenvolvimento de um Jornalismo que não desagregue os acontecimentos, mas que os contemple e os articule em um contexto determinado e estabeleça uma gama de interações com os receptores, sendo estes capazes de contribuir com a construção do sentido e a compreensão da realidade. Para Mar de Fontcuberta, o Jornalismo Sistema explica “procesos en los que los hechos aparentemente nuevos o inesperados son las sucesivas puntas de muchos icebergs sociales cuyas partes ocultas nunca fueron lo suficientemente mostradas”.

É preciso ter bem definida a ressalva de que os critérios de qualidade da informação nem sempre são fáceis de definir, e muito menos de levar a prática. Para uma emissora de rádio, como a que se estudou neste texto, em primeiro lugar deve ser considerado o objetivo de bem servir os cidadãos. O dever do Jornalismo é mais do que descrever os acontecimentos. A informação deve ser confiável e suficientemente completa para permitir uma real compreensão da atualidade. O entendimento das informações publicadas exige, cada uma, explicação de suas causas e um questionamento acerca de suas conseqüências.

O futuro do Jornalismo está em função da qualidade da informação. E esta afirmação tem uma justificativa: um receptor cada vez mais complexo e, por conseguinte, mais exigente. Afinal, como nunca, o cidadão tem sua vida atravessada pelas novas tecnologias e, por conseguinte, pela mídia. Em meio a uma explosão de informações, o receptor está cada vez mais capacitado a refletir sobre os acontecimentos que o cercam no cotidiano. A cada dia, ele está mais capacitado a selecionar as fontes e os meios de comunicação que necessita ler/ouvir/ver/acessar.

Por fim, uma das principais responsabilidades do Jornalismo é oferecer uma informação que possibilite ao receptor a construção progressiva de seu conhecimento acerca da sociedade em que vive e facultar-lhe as ferramentas necessárias para desenvolver-se com autonomia. Que considere o receptor não apenas com um consumidor automático de informações, mas um receptor consciente, “[...] que se aproxima a los médios con la exigencia de encontrar no sólo información sino significados”.
________________________________________________
Por Maicon Elias Kroth, jornalista pela UNISC e mestre pela PUCRS, doutorando em Comunicação Social pela Unisinos.
Leia mais...

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Jornalismo Investigativo na Rede

A forma como estão configurados os processos de apuração e produção de notícias na internet atualmente coloca produtor e receptor no mesmo ambiente. O jornalismo transforma o que é transmitido nos jornais através da produção para internet em blogs, sites, dando um novo sentido às relações.

O envolvimento de cidadãos comuns que antes atuavam como leitores na publicação e na edição dos conteúdos jornalísticos tormou-se uma prática comum, chamada Jornalismo Participativo ou Jornalismo Cidadão. Esta influência do público na produção da informação proporciona impactos diretos nas práticas tradicionais do fazer jornalístico que antes centralizava o conteúdo no editor. O conteúdo colaborativo permite que indivíduos não apenas publiquem como também compartilhem informações na rede.

Nos portais de notícias ou nos weblogs essa forma de produção aumenta o volume de informações fazendo com que os usuários interajam, atuando como co-produtores de notícias. Nesse contexto, observamos a produção do blog Direto da Fonte, do jornalista investigativo Giovani Grizotti, vinculado ao site da RBS TV através do link www.clicrbs.com. O blog veicula informações de cunho investigativo abordando temas como política, saúde, educação e segurança pública. Trata-se de uma plataforma onde o jornalista antecipa notícias e publica o andamento das investigações.
Um weblog, em sua forma estrutural, é uma rede constantemente construída e reconstruída através das trocas sociais, formando redes emergentes expressas a partir de interações entre os atores, onde os comentários proporcionam a criação de laços dialógicos. Redes sociais na internet têm um potencial imenso para colaborar, para mobilizar e para transformar a sociedade. Essas redes ampliaram as possibilidades de conexões e por conseqüência também a capacidade de difusão de informações. Logo, a sociedade se percebe e interage a partir da mídia além dos dispositivos tradicionais.

O jornalismo é uma das profissões mais afetadas pelas mudanças que se instauram no processo de produção. O jornalista é uma espécie de organizador da realidade que nos oferta a possibilidade de compreensão de sentidos por meio de uma lógica.

A investigação jornalística realizada pelo jornalista Giovani Grizotti durante o mês de novembro de 2009, sobre o golpe dos empréstimos aos aposentados e pensionistas do INSS, pode ser enquadrada neste novo contexto. A cobertura apresentada no blog limitou-se a três postagens, a primeira publicada em 15 de novembro de 2009, intitulada: “Golpe do empréstimo lesa aposentados”; a segunda no dia 16 do mesmo mês: “Dados do INSS teriam sido vazados em Santa Maria” e finalizando o assunto dia 19, com a postagem: “Preso golpista que vendia cadastros do INSS”. Este fazer jornalístico destaca-se pelas técnicas de apuração utilizadas, que são peculiares e se diferenciam da rotina convencional. Na concepção de Sequeira (2005), existe uma categoria jornalística específica intitulada jornalismo investigativo, diferenciada das outras pelo processo de trabalho dos profissionais, obrigados a lançar mão de metodologias e estratégias nada ortodoxas.

Na mídia atual, tal prática jornalística foge dos padrões da produção de informação por consistir em um processo que exige maior tempo e planejamento, no qual o repórter prima pelos detalhes. Esse processo tem a função de questionar as causas e os efeitos dos fatos, procurando explicá-los. Não se trata apenas de acompanhar o desdobramento de um evento, mas de explorar as suas implicações, levantar antecedentes – em suma, investigar e interpretar (LAGE, 2003).

A cobertura realizada por Grizotti no blog apresentou os desdobramentos do acontecimento atualizando o acontecimento para o leitor. Entretanto, não houve uma preocupação em explorar os antecedentes e o histórico do acontecimento visando apresentar um quadro das incidências anteriores de golpes ou fraudes na Instituição.
No blog de Giovani Grizotti os conteúdos das matérias estão dispostos de forma fragmentada e simplificada. Tal forma impede o leitor de acompanhar o desenrolar do acontecimento passo a passo. A fragmentação acaba por descontextualizar o conteúdo na medida em que não há uma preocupação em recuperar o acontecimento inicial e sim em noticiar o factual, o momentâneo, o chamado “furo”. A professora de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Chile, Mar de Fontcuberta, desenvolveu em suas pesquisas o conceito de Jornalismo Mosaico. Por este conceito entende-se uma forma de produção fragmentada, exposta, sem nenhuma hierarquização. Para a professora, os meios de comunicação são elementos chaves em uma sociedade complexa, onde já não há mais espaço para um jornalismo simplista. Assim, para atender essa sociedade, a prática do jornalismo deve oferecer uma boa fundamentação teórica visando suprir a necessidade de se traduzir fenômenos complexos ao público.

O que pudemos identificar no blog foi uma cobertura breve, incompleta, sem recuperação dos elementos que fizeram emergir o acontecimento, evidenciando uma preocupação com dados e não com seus significados.

Para Charaudeau (2007), a questão do acontecimento é frequentemente mal colocada no mundo das mídias, pois passa pela construção de sentido do sujeito enunciador, que o transforma em um “mundo comentado”. O acontecimento se configura então nesse espaço comentado, antes de sua percepção interpretativa. Assim, nunca é transmitido à instância de recepção em seu estado bruto, depende do olhar que se estende sobre ele, olhar de um sujeito que o integra num sistema de pensamento e o torna inteligível sendo construído sempre através da linguagem. Ou seja, é através da fala que o sujeito enunciador confere significação aos fatos e aos enquadramentos em que foram realizados os processos de seleção e produção da informação.

Neste contexto, uma boa reportagem é aquela que apresenta ao menos duas perspectivas com objetividade e imparcialidade. Assim, a mídia é o principal elo entre o que acontece no mundo e a representação das imagens desses acontecimentos atuando como uma formadora de consensos. Como consequência disso, existe a perda ou a redução do sentido original.

A investigação realizada por Grizotti fica comprometida no momento em que se torna factual, fragmentada, não atendendo às premissas de uma boa investigação jornalística. O jornalismo investigativo tem como principal característica desvendar as causas, as origens de um acontecimento, sem nunca ficar limitado ao factual. Essa prática relaciona-se com o jornalismo interpretativo na medida em que indaga sobre as causas e origens dos acontecimentos, buscando a relação entre eles para oferecer explicações de sua ocorrência ao público. Não se trata somente de uma questão de denúncia e espetacularização da notícia, mas sim de uma atitude social e responsável.

A cultura da mídia promove o espetáculo com vistas a conquistar a audiência, prejudicando a qualidade da informação que chega ao público. O importante é que fique clara a relevância de se fazer um jornalismo sério e comprometido com a sociedade, para que não sejam distorcidos os procedimentos de uma boa reportagem investigativa de maneira que se volte para a fragmentação da cobertura e para o sensacionalismo, acabando por alimentar a indústria do espetáculo
______________________________________________
Por Daiana de Oliveira Martins, formada em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário Franciscano - Unifra - Santa Maria, mestranda em Comunicação Social na UNISINOS.
Leia mais...

A auto referencialidade como estratégia

Onde está o real propósito do Jornalismo?


Peut-on parler sérieusement des médias dans les médias? Patrick Champagne

“Conheça nossa redação”, “Veja como o jornal é feito”, “Conheça nossos bastidores” “Saiba como é feito um programa de TV” são chamadas cada vez mais corriqueiras nos veículos de comunicação. O que não era adotado enquanto prática jornalística acaba tornando-se conteúdo principal em jornais e canais de televisão, impactando no esmaecimento do jornalismo enquanto compromisso social.

As grandes corporações midiáticas, detentoras do poder de projetar ofertas de sentido tornam o jornalismo “um discurso feito por uma instituição e que bajula a si mesma”, como dizia Ramonet (1999, p. 56), pois preocupam-se em produzir seus próprios materiais informativos destinados somente a falar de si mesmas em espaços destinados à pratica da disseminação da informação. Infelizmente, o que não é observado, nem é dito, frente a esse movimento crescente, é o esmaecimento do real propósito do jornalismo, o de explicar à sociedade os fatos e de formar o presente real de referência (GOMIS, 1990).

Compreendemos que o ato de autorreferenciar, adotado de maneira febril na atualidade, tentaria recobrir o que ficaria de fora das rotinas de produção, ou seja, tentaria mostrar o que não é visto, o que está nos bastidores e não chega até a tela da TV, ou ao jornal impresso, ou ao ouvinte de rádio. Trata-se de uma tentativa de chamar o leitor para si, convidando-o a fazer parte do seu mundo, conhecendo esta realidade.

Mas onde essas estratégias ganham força? Qual seriam os verdadeiros motivos pelos quais o jornalismo na atualidade deixaria de lado o seu real propósito e passaria a falar cada vez mais de si mesmo? A resposta a esse e outros questionamentos precisa necessariamente estar exposta a nós, consumidores midiáticos que buscam nessas ferramentas a informação através da verdade, do presente e do social.

Onde a autorreferência encontra guarida...

Cada vez mais, menos pessoas vêem, escutam ou lêem a mesma coisa. Na sociedade impregnada pela emergência dos mais variados meios de comunicação, os indivíduos estão na TV – nos mais variados canais -, no rádio – nas diversas estações –, na internet – nos incontáveis locais da web –, recebendo cada vez menos as mesmas coisas.

Com essa heterogeneidade formada pela recepção, o lugar de produção lida com certo mal-estar da perda do contato com o outro: o seu interlocutor. Em função dessa ruptura, dessa falta do outro, geram-se incompletudes que são tratadas cada vez mais por estratégias autorreferenciais para sintomatizar a existência da produção (FAUSTO NETO, 2007).

A autopromoção, como forma de (re?)afirmar sua posição no mercado, acaba se tornando prioritária em relação ao objeto central dos meios de comunicação. Esta tendência pode ser verificada nas estratégias autorreferenciais utilizadas pelo Grupo RBS. Observa-se, por exemplo, alusões frequentes a rotinas de produção dos veículos. Dados sugerem a formação de uma figura, que agrupa algumas estratégias utilizadas para autorreferenciar os processos internos de produção do Grupo RBS:



A figura acima é composta por círculos que estão conectados uns aos outros. Cada círculo representa um subsistema de práticas midiáticas, onde são desenvolvidos produtos com objetivo de autorreferenciar a organização. São eles:

1. Campanhas Institucionais – Campanhas publicitárias focadas na instituição Grupo RBS e que buscam falar dos bastidores dos meios de comunicação administrados pelo Grupo. Atualmente, veicula-se em rádio e TV a campanha: “Pra fazer a TV que você vê, a gente faz muita coisa que você não vê”.

2. Carta do Editor– Veiculada na Zero Hora Dominical, a carta do Editor-Chefe de Zero Hora, Ricardo Stefanelli, é também disponibilizada no Blog do Editor. Todo domingo, ele fornece algum parecer sobre o Jornal. Sempre referenciando os bastidores e o modo de fazer jornalismo do Grupo RBS.

3. Você Repórter – Canal interativo que propõe ao leitor o envio de matérias e fotos sobre acontecimentos presenciados. O canal funciona on line no site Clic RBS junto do canal Pelas Ruas.

4. Pelas Ruas – Unidade Móvel de Zero Hora, que fica disponível aos leitores para deslocamento e cobertura de acontecimentos, através do contato pelo site, o leitor sugere pautas para cobertura.

5. ZH Responde – O “ZH Responde” é um canal on line, inaugurado em 23 de novembro de 2008, que tem como objetivo revelar rotinas de produção de Zero Hora, tanto sobre a redação do jornal impresso como do zerohora.com. A promessa do canal é oferecer ao leitor um espaço onde será possível conhecer os mais variados processos jornalísticos: quem são os profissionais de Zero Hora, como é produzida uma matéria, etc.

6. Blogs dos Jornalistas – Cerca de 300 blogs são hospedados no Clic RBS. Entre eles, estão os dos jornalistas de Zero Hora, que falam sobre os mais variados assuntos. Como, por exemplo, o da repórter Guarcira Merlin, que chama-se A Extrenauta, e tem como objetivo falar dos bastidores da redação da TV e jornal;

7. Blog do Editor – Lançado em 17 de outubro de 2009, o blog é uma ferramenta que tem como objetivo compartilhar a “vida na redação” através de posts diários feitos diretamente pelos editores do Jornal Zero Hora. As postagens falam sobre o dia a dia na redação: as dificuldades de fazer um jornal diário, a confecção da capa, etc. É hospedado no mesmo ambiente dos demais blogs dos jornalistas.

É possível observar que cada um dos elos que compõem a figura possui funções em si e funções que travam contiguidade com os outros, ou seja, não são elementos pensados de forma singular, mas sim, componentes de uma orquestra maior, que aqui estamos considerando enquanto um sistema.

Esse sistema mostra-se como um nicho que abarca um desenho de concepção estratégica de comunicação adotada pela organização: Falar de si mesmo, tendo como objetivo trazer o leitor cada vez mais próximo e cada vez mais imerso nessa cultura, fazendo isso através da sua matéria significante ofertada – o jornalismo.

Essa estratégia é velada, pois acontece de forma silenciosa, não estando explícita aos consumidores/leitores. Percebe-se a crescente expansão deste modelo de estratégia com a velocidade da criação de novos canais com propósitos análogos.

* * *

É possível perceber que a recuperação do contato com o outro, a busca pela fidelização do relacionamento produção-recepção, é pregada pela estratégia autorreferencial do Grupo RBS. Esse propósito é instaurado nos simbólicos contratos de leitura, apresentados nessa ambiência formada por diversos dispositivos jornalísticos: blogs, colunas do jornal, campanhas, entre outros.

O produto do jornalismo estaria ameaçado por essa simbólica destinada entre outros objetivos a gerar completudes. O apagamento do propósito de informar estaria assegurado pelo recurso da autopromoção, impregnado de estratégias veladas, interessadas em gerar vínculo com o leitorado.

Respondemos ao questionamento inicial, realizado por Patrick Champagne Peut-on parler sérieusement des médias dans les médias? (1999 p. 1): junto com o autor, pois, entendemos que não é possível falar seriamente das mídias nas mídias, seja para criticar, seja para buscar a venda de uma boa imagem. Portanto, estaríamos, sim, frente a um novo movimento midiático que parece surgir em massa e que não diz respeito ao jornalismo que buscamos enquanto projeto social, mas sim, a uma busca pelo vínculo e pela fidelização dos leitores/consumidores midiáticos.

Essa estrutura organizada estrategicamente pelas empresas midiáticas parece corresponder a uma teia formada por espaços “vazios” e sustentada por conexões com o interlocutor. Nessa teia, cada um de nós, a cada passo estaria mais preso e mais envolvido pela curiosidade do desconhecido e do obscuro, que reside nos bastidores.
Para finalizarmos, recuperamos uma questão aclamada em épocas de defesa do diploma profissional para a categoria jornalística, mas ousamos em fazê-la buscando novas respostas que independem dessa classe trabalhadora, mas sim das grandes corporações detentoras da hegemonia midiática: Qual o futuro do jornalismo?

__________________________________________________________________
Por Luana Goulart Teixeira - Graduada em Relações Públicas pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS (2008), Mestranda em Comunicação Social – Processos Midiáticos pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Atua como Relações Públicas da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE).
Leia mais...

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Cobertura superficial X sociedade complexa

“Utopia (à moda de Fourier): a de um mundo onde só houvesse diferenças,
de modo que diferenciar-se não seria mais excluir-se.” (Barthes)

A cada instante novas informações são espalhadas pelo mundo e os conceitos de espaço e tempo se dissipam na velocidade acelerada em que essas informações se espalham. Vivemos sob o olhar de lentes que nos vigiam 24 horas (câmeras fotográficas, celulares, webcams, câmeras de segurança...). Hoje qualquer pessoa pode gravar áudios e vídeos, fotografar e divulgar flagrantes da vida real para todo o mundo. A sociedade vive refém de uma cultura visual. Ao observar a cobertura jornalística fica fácil identificar esse processo. A mídia transforma os espectadores reféns de imagens, excita-os com os flagrantes, tratando-os apenas como uma massa de consumo da informação. Cada vez mais as notícias apelam para a espetacularização e para a superficialidade. Esses vídeos amadores ganham o mundo e acabam virando notícia, mesmo que o fato não seja mais novidade.

Essas duas características, espetacularização e superficialidade, do jornalismo atual são facilmente detectadas em coberturas jornalísticas da grande mídia. Como exemplo, toma-se o caso da estudante, de 20 anos, do curso de Turismo da Universidade Bandeirantes de São Bernardo do Campo, Geisy Arruda. A notícia da confusão armada por cerca de 800 estudantes toma proporções maiores a partir da divulgação de vídeos amadores pela internet. A cobertura jornalística baseia-se nos vídeos postados, veiculando o caso somente uma semana depois do ocorrido. Embora tendo abordado o tema de maneiras diferentes, não o contextualiza e nem o conecta com aspectos sociais pertinentes. Trata-o com superficialidade, aproveitando as cenas do “espetáculo” para manter a audiência.

O âncora do Jornal Nacional, um dos programas jornalísticos mais vistos pelos brasileiros, refere-se à estudante, na chamada da matéria do dia 09 de novembro, como “a aluna do mini-vestido”, sem citar o nome. A identidade da personagem é revelada no decorrer da matéria. Percebe-se aqui um certo grau de pré-julgamento e de exagero do uso da linguagem visando prender a atenção do telespectador.

“O reitor da Universidade Bandeirantes, em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, cancelou hoje a decisão de expulsar a aluna do mini-vestido”. (Willian Bonner - Chamada da matéria - JN do dia 09 de novembro de 2009)
Além de identificar a protagonista da ação como “a aluna do mini-vestido”, a matéria apenas relata os fatos e não aprofunda a discussão da expulsão ou não da aluna. O porta-voz da Universidade Bandeirantes é ouvido somente no dia seguinte (JN do dia 09 de novembro de 2009). Mesmo nessa outra matéria a abordagem é simplista, a preocupação se materializa apenas em dar voz à Uniban, sem sequer instigar o telespectador a analisar os fatos. Não há contextualização das implicações sociais do ato praticado pela Universidade e pelos estudantes contra a universitária.
Esse modo de fazer jornalismo também é verificado em outro programa da emissora, no Fantástico. Embora apresente características diferentes do Jornal Nacional (este é um programa jornalístico diário), com um maior tempo de produção e de veiculação das reportagens, o programa dominical também trata o assunto com superficialidade, pois não aborda todas as relações sociais que estão envolvidas no desenrolar do acontecimento. Não analisa o comportamento dos estudantes, os quais se portam como se estivessem na idade média, julgando a universitária num tribunal de inquisição e torturando-a. As reportagens levadas ao ar pelo Fantástico, nos dias 1º, 08 e 15 de novembro, abordam os fatos de maneira simplista, levando o desenrolar da matéria para o lado do entretenimento, do espetáculo.

Na primeira reportagem que foi ao ar no Fantástico, no dia 1º de novembro, os profissionais que trabalham a notícia trazem à público um outro fato ocorrido na Uniban, quando uma outra aluna foi vítima de espancamento por não ter aderido a uma manifestação estudantil contra o sistema de avaliação da universidade. Mas, mesmo com mais informações e subsídios em mãos, os jornalistas não discutem a questão da intolerância e da violência praticada dentro do ambiente acadêmico. Parece, ao telespectador, que estes acontecimentos são isolados e comuns à Uniban. As questões para aprofundamento do assunto seriam muitas, como: em outras universidades como reagem os estudantes em situações tensas, que possam gerar conflitos? O que leva um grupo social reagir de tal maneira, tão primitiva? Algumas perguntas ficam soltas, sem respostas.

A opção pela superficialidade na produção e edição do material que vai ao ar é visível. Nenhum sociólogo, cientista social ou psicólogo é ouvido pela reportagem para tentar analisar a atitude dos estudantes. Porém, nessa mesma reportagem, a consultora de moda, Gloria Kalil, é entrevistada para comentar sobre o vestido que a estudante usava no momento do tumulto na universidade. Gloria diz que a estudante não entende que a moda é um poderoso instrumento de informação, é uma linguagem. Aqui, como na matéria do dia 09 de novembro veiculada no JN, também está implícito um pré-julgamento à estudante, como se ela não fosse a vítima, mas sim a culpada pelo tumulto. Abaixo as palavras da consultora.

“Quando a gente põe uma roupa errada, que não combinou com o lugar que a gente foi, a gente acaba sendo lida de uma maneira que não era a que a gente gostaria.” (Gloria Kalil – em entrevista ao repórter Valmir Salaro - Fantástico do dia 1º de novembro de 2009)

Na segunda semana, no Fantástico do dia 8 de novembro, é informada a expulsão de Geisy da Uniban. Nessa matéria, outros atores sociais são ouvidos, um advogado, um educador e um aluno da universidade são entrevistados pelo repórter Valmir Salaro para falar sobre a decisão de expulsão da estudante. Todos são contrários à expulsão, mas nenhum aborda a punição aos estudantes agressores (a universidade optou por suspender das aulas, por alguns dias, os envolvidos. Punição menor que da vítima). O repórter apenas lê trechos da manifestação, escrita pela União Nacional dos Estudantes, pedindo o cancelamento da expulsão e o devido julgamento aos culpados.

“Em nota, a União Nacional dos Estudantes diz que a universidade é um espaço de diálogo, onde deveriam ser construídas relações sociais livres de opressões e preconceitos, dá sinais de que vive na era das cavernas. E exige que a matrícula da estudante seja mantida, que a universidade se retrate e que todos os agressores sejam julgados.” (Trecho da nota divulgada pela UNE, lido pelo repórter Valmir Salaro - Fantástico do dia 8 de novembro de 2009)

No programa Fantástico do dia 15 de novembro, a reportagem sobre o caso da estudante que foi agredida verbalmente, por cerca de 800 alunos, e por alguns dias expulsa da Universidade (decisão revista pela própria Uniban devido à repercussão e os protestos de outros estudantes pelo país) toma outro rumo. Na matéria feita pela repórter Renata Ceribelli, Geisy é mostrada como uma celebridade. As mudanças que a exposição à mídia trouxeram para a estudante são destacadas na matéria, principalmente abordando os benefícios que a “fama” proporciona, como, por exemplo, ganhar o megahair do cabeleireiro em troca de publicidade.

“Tentamos começar a entrevista. Agora é o cabeleireiro que precisa falar urgente. Em 20 dias, a mudança no visual é grande: É só olhar um pouco para Geisy para perceber o quanto ela já mudou. Está mais loira e com os cabelos maiores. Colocou um aplique de 70 centímetros de cabelo. Por quê? ‘Porque eu sempre tive vontade de ter um cabelão loiro. Teve um cabeleireiro que viu minha história e me deu de presente. Claro que eu não ia falar que não queria. De graça, é ruim hein’”. (Renata Ceribelli e Geisy Arruda - Fantástico do dia 15 de novembro de 2009)

Na casa da universitária, a repórter leva Geisy a mostrar e experimentar todos os vestidos curtos do guarda-roupa e a instiga a revelar o quanto é vaidosa. Falam sobre as futilidades que Geisy não abre mão, como o uso frequente de maquiagem e salto alto até para ir à padaria perto de casa. A repórter vai até a Uniban entrevista alguns estudantes que participaram ou acompanharam o tumulto e as agressões. Somente nesta terceira semana de veiculação do assunto, que o Fantástico se propõe a ouvir outros atores do acontecimento, mesmo que ainda sem analisar profundamente as atitudes de cada personagens. Na mesma matéria, a reportagem acompanha uma atriz, convidada pelo programa, a sair pelas ruas desfilando com um vestido parecido ao que Geisy usou. Todos os olhares e comentários são observados. Nesse momento, um analista social poderia ter analisado o comportamento das pessoas na rua, pois alguns tiveram reações parecidas aos estudantes que a insultaram. Para encerrar a matéria, a repórter acompanha a estudante em um passeio pelo shopping, para testar a “fama”.

As relações de gênero, sociais e comportamentais são pouco ou quase nunca abordadas nas matérias destacadas acima. Poderiam ser analisadas questões relacionadas ao preconceito masculino quanto ao estilo de se vestir das mulheres, pois, levando em conta as atitudes dos estudantes principalmente homens, as que usam roupas curtas estão provocando e incitando-os ao estupro. No âmbito das relações sociais e comportamentais as matérias poderiam abordar questões que se referem à convivência da juventude com a diferença, a tolerância e a aceitação do outro como indivíduo único. Além de analisar porquê existem regras sociais e comportamentais que ditam como as pessoas devem se vestir e se portar em determinados ambientes.
A desagregação de informações e a desarticulação dessas, a pouca profundidade com que os acontecimentos são trabalhados pelas coberturas e a espetacularização na busca pela simplificação são características de um modelo de jornalismo que está estabelecido em nossos dias. A professora de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Chile, Mar de Fontcuberta, nomeia esse modelo de Jornalismo Mosaico. Para os meios de comunicação é cômoda a posição de trabalhar dentro de um formato preestabelecido de produção, ofertando aos receptores sentidos simplificados, sem requerer uma interpretação. Nesse caso, os códigos emitidos são facilmente assimilados por esses receptores. Segundo o semiologista francês Roland Barthes, é nesse processo que os conjuntos ideológicos (os códigos, nem sempre perceptíveis) são absorvidos despercebidamente, o que possibilita e torna viável a persuasão. Por isso que, Pierre Bourdieu aponta como responsabilidade dos jornalistas a circulação dos inconscientes. Para ele, é através das palavras que os jornalistas produzem efeitos e exercem a violência simbólica, que se perpetua na e pela ignorância. A circulação desse inconsciente se dá na medida em que quem exerce essa violência o faz sem saber, assim como aquele que a sofre não percebe.

O jornalista, sociólogo e ex-aluno de Barthes, Ignácio Ramonet, defende que a mídia analise o próprio funcionamento, que se informe sobre a informação. Para Ramonet, “a mídia deve promover análises de seu próprio funcionamento, nem que seja para que se possa aprender como ela funciona, e para lembrar que ela não está a salvo da crítica. É uma das principais condições de confiança que os cidadãos lhe dedicam”. Cabe aos estudiosos do Jornalismo e também aos profissionais do meio pensarem sobre esse jornalismo que estamos praticando. Frente a evoluções aceleradas da sociedade, em todas as esferas, a simplificação com que o jornalismo transmite as informações chega na contra-mão dos anseios de uma sociedade cada vez mais complexa e sedenta por conhecimento.
__________________________________________________
Por Alciane Nolibos Baccin, formada em Comunicação Social - Jornalismo, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), especialista em Comunicação Midiática pela mesma universidade e mestranda em Comunicação Social pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Leia mais...

As três críticas

Os textos produzidos para este blog foram inspirados no que podemos chamar de três modelos de crítica: kantiana, foucaultiana e barthesiana, tendo como base a forma como cada um dos autores em questão respondem à pergunta “o que é a crítica”. Tentaremos esboçar em linhas gerais cada uma das perspectivas, estabelecendo relações transversais entre as mesmas no intuito de resgatarmos as contribuições destas para uma crítica das práticas jornalísticas.

O modelo de crítica proposta por Immanuel Kant num primeiro momento parece condicionado ao contexto filosófico e ao momento histórico no qual ele se insere. No entanto, demonstra relevância atemporal ao enfatizar a necessidade do pleno exercício da liberdade intelectual, que fundamenta a experiência moderna e se traduz no cerne da proposta iluminista. O texto também representa o início da filosofia dita moderna, pois pela primeira vez volta-se para a atualidade e sobre ela debruça o foco de suas questões, conforme bem caracteriza Foucault (1984) em leitura do texto kantiano. A percepção do autor deixa claro que, muito além de um episódio inaugural da modernidade europeia, o iluminismo representa uma questão filosófica que tenta ser respondida até os dias de hoje, persistindo como processo permanente que atravessa toda a filosofia pós-Kant (idem, p. 8). No final do texto, Foucault aponta as duas tradições críticas que dividem a filosofia moderna – uma analítica da verdade e uma analítica da atualidade – como herdeiras do pensamento kantiano e oriundas das reflexões sobre Aufklärung.

Michel Foucault (1990) aproxima seu conceito de crítica à definição do esclarecimento (Aufklärung) elaborada por Kant (1990), que percebe este enquanto oposição à menoridade, entendida como incapacidade que deriva por um lado do excesso de autoridade por parte de quem detém o poder, e por outro, da falta de decisão e coragem por parte dos governados. Portanto, as perspectivas críticas dos dois autores estão bastante próximas, embora Foucault acrescente à sua conceitualização uma proposta metodológica de investigação histórica-filosófica, a acontecimentalização, e Kant venha a retrabalhar a questão do Aufklärung anos mais tarde, em repercussão aos desdobramentos da Revolução Francesa. Em Foucault, a entrada na questão do esclarecimento se dá, portanto, a partir do método genealógico, que prescreve o entendimento das condições que possibilitam o surgimento e a permanência das práticas discursivas, objetivando estabelecer relações entre os saberes através de diferentes épocas e campos do conhecimento. ´Trata-se do “acoplamento do conhecimento com as memórias locais, eu permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táticas atuais” (FOUCAULT, 2003: 171).

Desse modo, Foucault situa sua concepção da Aufklärung no processo de governamentalização da sociedade europeia, retomando o que ele chama de “explosão” desta com movimento da Reforma protestante, bem como os desdobramentos posteriores. Ele trabalha seu conceito de crítica (o autor prefere falar em uma “atitude crítica”) como reação a este processo, compreendendo a governamentalização como prática social de sujeitar os indivíduos através de mecanismos de poder, surgindo daí sua primeira definição de crítica como “a arte de não ser governado”. A crítica seria portanto uma “inservidão voluntária”, uma atitude através da qual o sujeito se dá o direito de questionar “a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade” (FOUCAULT, 1990: 5). Neste sentido, a crítica poderia ser colocada como atitude moral e política dos sujeitos, pontuada face a uma relação de poder.

Já Roland Barthes (2002) contribui para uma percepção da crítica diferenciada, pois parte de um espaço distinto da filosofia, trabalhando o foco a partir da linguagem e tendo como objeto preferencial a crítica literária. A perspectiva barthesiana não contradiz as percepções de crítica partilhadas por Kant e Foucault, mas traduz uma visada da problemática a partir de outras angulações. De certa forma, poderíamos inserir a concepção barthesiana de crítica naquilo que Foucault chama de “pequenas atividades polêmico-profissionais”, pois origina-se numa problemática regionalizada, a da crítica literária. No entanto, é possível retirar da reflexão de Barthes concepções mais gerais sobre crítica, na medida em que podem ser estendidas por homologia a outros âmbitos além da literatura, como, por exemplo, o jornalismo.

Barthes (2002) concebe o objeto da crítica como não sendo o mundo, mas o discurso sobre um outro – um discurso sobre um discurso ou metalinguagem. Desse modo, o atrito entre a linguagem crítica e a linguagem do outro constituem a atividade crítica, que busca não estabelecer verdades, mas validades referentes à coerência do sistema de signos em questão. A tarefa da crítica é formal: ajustar a linguagem que lhe fornece sua época ao sistema formal de constrangimentos lógicos elaborados pelo autor, segundo o momento histórico no qual ele se insere. No entanto, o foco da crítica é atemporal, pois o diálogo que ela estabelece entre o autor e sua própria subjetividade volta-se para o presente. A crítica, segundo Barthes, “não é uma ‘homenagem’ à verdade do passado, ou à verdade do ‘outro’, mas a construção do inteligível do nosso tempo” (BARTHES, 2002: 352, tradução nossa).

A concepção barthesiana de crítica enquanto metalinguagem, na qual o objeto da crítica não é o discurso, parece complementar-se com a percepção foucaultiana da crítica como instrumento. Nas palavras de Foucault (1990: 2): “(...) a crítica existe apenas em relação a outra coisa que não ela mesma: ela é instrumento, meio para um devir ou uma verdade que ela não saberá e que ela não será, ela é um olhar sobre um domínio onde quer desempenhar o papel de polícia e onde não é capaz de fazer a lei”. Essa “lei”, em termos barthesianos representaria o domínio do “outro”, externa portanto a crítica que por definição deve estar voltada ao discurso sobre este “outro”.

Para Foucault, a crítica vai além de um tipo de atitude do sujeito – “uma certa maneira de pensar, de dizer, de agir igualmente” – para englobar “uma certa relação com o que existe, com o que se sabe, o que se faz, uma relação com a sociedade, com a cultura, uma relação com os outros também” (1990:1). Desse modo, podemos dizer que a definição foucaultiana acrescenta outras tonalidades em relação à de Barthes, quando esse entendia a crítica como resultante da fricção entre linguagens, da linguagem crítica à linguagem do autor observado e da relação da linguagem-objeto ao mundo. Foucault pensa a relação de forma mais ampla, envolvendo a trama das relações múltiplas entre saber e poder que o autor retoma através do método genealógico.
* * *


Transparece nas três leituras a preocupação da crítica para com a atualidade, e talvez por isso estas percepções sobre crítica pareçam tão caras ao jornalismo e guardem tanta potencialidade para se trabalhar uma crítica das práticas jornalísticas. Rememorando o que Foucault caracterizava como as duas grandes vertentes kantianas da filosofia moderna, a analítica da verdade e da atualidade, também podemos focalizar a partir desses dois prismas a realização de uma crítica sobre o jornalismo. Essa dupla articulação entre verdade e atualidade que embasa o jornalismo em sua concepção clássica – caso nunca tenha existido, ao menos tem funcionado enquanto ideal imperativo – transparece como elemento chave da atitude crítica dos teóricos, sobretudo quando enfocam o impacto das chamadas novas tecnologias na atividade jornalística (KAPUSCINSKI, 2007; RAMONET, 2001), que constituem o maior desafio deste campo em nossos dias.

A perspectiva kantiana faz sentido no universo do jornalismo, pois o próprio surgimento do jornalismo está vinculado ao ideal do esclarecimento de sair da menoridade. Aliás, não é mera coincidência que este manifesto do esclarecimento tenha sido publicado na imprensa, confirmando o papel deste na divulgação do ideário iluminista e a posição de destaque que viria a desempenhar no processo de desconstrução do monopólio do saber e do poder antes confinado aos domínios da Igreja. Surge aí o mito da transparência, que marca de forma capital o exercício da atividade jornalística e que transforma esta na prática que conhecemos hoje, “obstinada em vasculhar todos os espaços privados na busca de uma difusão pública, num pretenso interesse da própria sociedade” (MARCONDES FILHO, 2002: 21). Contudo, embora a transparência persista como princípio essencial do jornalismo, o esclarecimento enquanto ato de sair da menoridade continua tão imperativo e utópico quanto era em 1784, data da publicação do texto de Kant (como tenta mostrar o texto de Marja Coelho, neste blog).

A contribuição de Barthes sobre a crítica literária pode ser aplicada por homologia à crítica jornalística, ao entendermos esta como resultante da relação entre duas linguagens: a linguagem crítica e a linguagem do jornalismo. Ao conceitualizar a crítica enquanto a “construção do inteligível do nosso tempo”, o autor sublinha o imperativo da crítica de estar constantemente voltada ao presente, por mais que esteja circunscrita a um objeto do passado.

Por este viés, a crítica do jornalismo não estaria apenas restrita ao âmbito interno enquanto “pequena atividade polêmico-profissional”, para utilizar uma expressão foucaultiana, mas residiria nela uma potencialidade de compreender nosso presente social como um todo, sobretudo pela centralidade que o jornalismo e os media assumem na atualidade. Um exemplo disso seria a leitura que José Miguel Wisnik (1992) faz da obra-prima de Balzac, ao relacioná-la ao tempo presente de sua crítica através de uma breve reflexão sobre ética e imprensa num dentre outros tantos episódios da era Collor. Dessa forma, o interesse da crítica não recai somente ao universo balzaquiano, mas ao modo como a obra representa “uma atitude existencial e discursiva que tem força de paradigma e, assim, se realimenta do próprio real, que muitas vezes a imita com insistência e clareza espantosas” (WISNIK, 1992: 339), presente em nossa imprensa tanto no jornalismo do século XIX como em nossos dias.

Talvez Foucault (1990: 2) aponte uma pista interessante para se entender a crítica do jornalismo na síntese do que entende por atitude crítica “(...) quais que sejam os prazeres ou as compensações que acompanham essa curiosa atividade de crítica, parece que ela traz, de modo suficientemente regular, quase sempre, não somente alguma rigidez de utilidade que ela reivindica, mas também que ela seja subtendida por uma sorte de imperativo mais geral - mais geral ainda que aquela de afastar os erros. Há alguma coisa na crítica que se aparenta à virtude. E de uma certa maneira, o que eu gostaria de dizer a vocês era da atitude crítica como virtude em geral.”

É em direção a esse senso de virtude que se movem os “ensaios críticos” que constituem este blog, na tentativa de incorporar aos nossos objetos de pesquisa uma crítica das práticas jornalísticas que colabore para traduzir o espírito de nosso tempo.
_____________________________________________________
Por Aline Roes Dalmolin, Doutoranda e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Jornalista pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Seu texto não constitui uma crítica, mas traz os aportes de cada uma das perspectivas, retrabalhando-as sob a ótica de uma crítica das práticas jornalísticas
Leia mais...

Modos de fazer...

Modos de fazer e a responsabilidade no jornalismo


A mídia falar da mídia tem sido fato constante em qualquer meio de comunicação social. A auto-promoção passou de marketing a narrativas que trazem o making off das redações. Pensar uma crítica das práticas jornalísticas é pensar em jornalista que escreve para jornalista, jornalista que fala sobre jornalista, mídia que critica a si mesma, conteúdos evidentes em muitos de seus textos.

Verificamos isto a partir da auto-referencialidade expressa em textos de cartas aos leitores de revistas semanais. Na seção “Carta ao Leitor” da revista Veja, encontramos quatro tipos de cartas que caracterizamos como: Tradicional: texto opinativo e/ou informativo; Tradicional auto-referencial: texto que cita reportagem na edição presente ou em outras da mesma revista; O nome da revista : texto explicitando a marca da revista; e Celebrativo: texto que celebra o jornalismo e/ou descreve os processos de produção de notícias.

Oito “cartas” podem ser situadas nos modos da revista se auto-referenciar no contexto celebrativo. Tal estratégia fica clara em alguns títulos, como, “Profissão: repórter” (06/05/2009), “Pagos para descobrir” (13/05/2009) e “Nossa repórter em Honduras” (07/10/2009). Nestes exemplos a enunciação se faz voltada a um processo de celebração e de produção de reportagens que compõe a respectiva edição. Antônio Fausto Neto (2007) conceitua a celebração do jornalismo como uma justificativa da inserção de auto-referencialidade “no contexto da edição e, consequentemente, de legitimar a performance deste sistema de operação”.

Para pensar uma crítica das práticas jornalísticas sob este foco, consideramos a seção aqui trabalhada como um Sistema de Responsabilização da Mídia (Media Accountability Systems – MAS) proposto por Claude-Jean Bertrand (2002). Ou seja, “qualquer meio de incitar a mídia a cumprir adequadamente seu papel”. Este autor considera a “Carta do Editor” como um MAS, e a “Carta ao Leitor”, que aqui focamos, pode ser enquadrada neste gênero à medida que se trata de um texto que fala pela revista, e embora não seja assinado, sabemos que tais seções são encargos de direções editoriais.

Veja associa a responsabilidade da mídia e a auto-referência num mesmo espaço: Carta ao Leitor. Nestas condições a seção, se configura como um MAS impresso e interno, mas que se exterioriza propositalmente. Interno que se exterioriza pelo fato de que a idéia proposta na categoria celebrativa faz um movimento de “dentro para fora”. Durante esta ação, os jornalistas são apresentados aos leitores no texto como protagonistas, bem como na descrição dos bastidores da matéria.

Embora a “Carta ao Leitor” não seja formalmente considerada um MAS por Bertrand, ela se comporta como um mediador que leva ao leitor não apenas a opinião da revista, mas também responde sobre “seus modos de fazer” e a responsabilidade que envolve todo o processo enquanto “voz da revista”, e neste espaço, procura apresentar provas de qualidade de seu produto. Em outras palavras, entendemos a seção não como um “MAS propriamente dito”, mas como um reflexo daquilo que a mídia tenta expressar através de um código próprio (descrição da atividade) na tentativa de oferecer transparência ao público.

A auto-referência que indicamos como celebração do jornalismo, ou o que também podemos chamar de processos de produção – ao pensarmos pelo ponto de observação da revista após acompanhar vários textos daquelas cartas – se presta ao serviço de qualificar a atividade jornalística e seus produtos. Ou seja, trabalha como um sistema de responsabilização da mídia. Examinemos isto em trecho de uma das cartas:

“As reportagens de Lauro Jardim e Duda Teixeira reafirmam o valor ainda sem sucedêneo das matérias jornalísticas elaboradas por profissionais com o tempo, recursos, preparo e objetividade necessários para informar e esclarecer de modo confiável” (Profissão: repórter, Carta ao Leitor, Revista Veja, 06/05/2009), (grifo nosso).

Enquanto mediador entre o que acontece nos bastidores da revista e o leitor, a seção atua auto-referencialmente como um espaço que justifica e elucida suas reportagens, bem como seus modos de fazer. Além de descrever os processos de produção das matérias enaltece seus jornalistas apresentando um propósito relativo a preferência por determinada pauta. O texto inicia abordando determinado assunto, faz um resumo sobre o tema tratado e insere o jornalista-ator:

“Para quem tem menos de 30 anos, a expressão “Cortina de Ferro” é apenas estranha. Ela foi, no entanto, sinônimo de um pesadelo que tirou o sono do mundo por mais de quatro décadas no século passado. (...) O jornalista de VEJA Diogo Schelp, que quando criança morou com os pais na Alemanha, lembra-se de um colega de escola apontando com temor as torres dos guardas armados (...) Ele embarcou com a missão jornalística de entender o que mudou no país desde a unificação. A reportagem de Schelp começa na página 126 (...)” (O dia em que a liberdade venceu, Carta ao Leitor, Revista Veja, 11/11/2009).

Neste exemplo, podemos conferir que, além de levar ao leitor uma informação adicional sobre a reportagem, o texto da Carta ao Leitor introduz o jornalista na história como um dos protagonistas da ação.

Encontramos comentários das cartas aos leitores no espaço que a revista confere à participação da audiência que, através de pequenos textos, explicita suas impressões, opiniões, sugestões e/ou reclamações. Porém, devemos levar em consideração que os textos passam por “edições”, fato mencionado pela própria revista: “Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas resumidamente” (trecho do texto que traz orientações sobre o envio de cartas à redação, encontrado ao final da seção Leitor).

É certo que podemos identificar um processo de interação entre leitor e mídia ao articularmos estes ambientes dentro da revista. Mas pensando na verdadeira utilidade da “Carta ao Leitor”, encontramos dificuldades em visualizá-la no sentido de servir ao consumidor como um programa que venha melhorar a qualidade de seus serviços. Bertrand atribui aos MAS a importância de indicar ao público princípios e regras jornalísticas, além de entender quais as necessidades demandadas pelo primeiro.
Embora a seção não seja explicitamente um sistema de responsabilização da mídia, como já falamos, ela trata da própria revista, atua dentro dos princípios da organização e proporciona a visibilidade de seus colaboradores colocando em foco seus predicados, esforçando-se para comprovar a qualidade do seu produto. Seja ele confiável ou não, qualidade que acaba tendo o aval confiado ao julgamento do seu público.

Porém, táticas de persuasão ao público que envolvem operações de produção como álibi da qualidade, podem se encaixar em outra classificação apontada por Bertrand (2002), a de “manobras de relações públicas”. O autor descreve tal categoria, vista assim por alguns críticos, como uma manipulação da mídia que apenas estaria prevendo lucro e/ou propaganda. No entanto, quando verificamos algumas cartas de leitores, mesmo que editadas, entendemos que nem sempre o público aceita o que lhe é imposto. Mas a pergunta permanece: seria mais uma estratégia da mídia abrir este espaço para a “opinião pública” com o intuito de se mostrar um veículo de liberdade de expressão?

É possível que a circulação entre os textos das cartas aos leitores e as respostas da recepção, faça parte da estratégia dos MAS de tentar provar ao público que a vocação do meio de comunicação, bem como seus profissionais, é satisfazê-lo como foi proposto por Bertrand (2002). A auto-referência vinculada a este sistema é mais um meio das mídias conquistarem a audiência da confiabilidade. Ou seja, apresentando seus modos de fazer mostrar ao leitor em quem este pode depositar credibilidade. E ainda, conforme aquele autor, indicar que os Sistemas de Responsabilização da Mídia possuem regras e princípios, existindo tanto para prestar conta aos seus leitores, como para entender as necessidades dos mesmos.
________________________________________________________
Por Aline Weschenfelder: jornalista, formada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos e mestranda em Comunicação Social.
Leia mais...

A era da convergência digital...

A era da convergência digital sob reflexos da menoridade kantiana

Falar em convergência de mídias, para muitos, pode parecer um planejamento do futuro ou possibilidades para serem alcançadas vislumbrando o que há de vir com a televisão digital. Porém, ela já vem acontecendo. A abordagem da convergência procede acerca das questões que integram redes, como a informática, as telecomunicações, o ramo da produção de informações e o audiovisual. Convergência é um conceito antigo que assume novos significados; ela refere-se a um processo e não a um ponto final.
Envolve as transformações da maneira de produção, transmissão e também de consumo dos produtos comunicacionais. Aliado a essa caracterização, se refere também, ao processo de penetração de uma mídia em outras. Sendo assim, desde as primeiras experiências de internet isso ocorre.

Outras mídias apropriaram-se da web como forma de manter a audiência e aumentar as vendas. Cabe pensar a internet como espaço de interação e mediação entre os vários campos que coexistem nas sociedades. O jornal impresso, por exemplo, apareceu na rede primeiramente adotando as suas características tradicionais, porém sendo online. Contudo, com o passar do tempo necessariamente acumulou especificidades. Na questão comercial a repetição dos modelos também acontece, o jornal leva para web os mesmos padrões de negociações obtidas na versão de papel. A assinatura, publicidade e até mesmo o sistema de classificados passam a coexistir na internet. Entretanto agregando valores e não sendo uma troca, pois as versões impressas continuam.
Com os outros meios de comunicação, também vem ocorrendo dessa maneira. Isso porque, através da internet os produtos comunicacionais podem tomar dimensões mundiais, tanto para quem a utiliza, como para os investimentos. O que se apresenta é uma tendência ao global nos diversos níveis de interesse, por exemplo, econômicos, políticos e sociais, visto que gera maior tempo e probabilidade de aplicações por parte empresarial, tanto pela facilidade e mobilidade, como pela audiência espalhada por horários variados.

A internet é o exemplo mais clássico de convergência, entretanto, outros meios de comunicação estão incorporando - e a cada dia mais - em suas rotinas de trabalhos outras mídias. É comum ligar a televisão e ouvir referência a algum site ou jornal impresso, porém, atualmente o processo de convergência vem sendo ainda mais profundo.
Parece ter virado rotina o programa Fantástico, da TV Globo, exibir os vídeos mais visitados na web durante a semana. Diversos audiovisuais, feitos por amadores ou profissionais, chegam ao programa dominical como uma experiência que chamou atenção nos últimos dias. A estratégia adotada é que a partir dos materiais captados se apresente à temática e aprofunde o assunto. Uma maneira de não deixar de mostrar aquilo que anda fazendo sucesso em outros veículos de comunicação. Contudo, como muitas vezes os conteúdos desses vídeos têm baixo grau de interesse são agregados aspectos para torná-los mais atrativos.

No último domingo o programa exibiu o vídeo sucesso de acessos no portal Terra, durante a semana anterior, em que Peter Hitchener, um jornalista australiano, aparece na bancada do jornal das 18 horas do Canal “9 News” em Melbourne, quando é surpreendido por um pássaro andando na imagem de fundo do telejornal que é capturada por uma câmera externa dedicada à captura de imagens panorâmicas da cidade.

Uma gaivota gigante foi motivo de 69.905 acessos no portal e conseqüentemente a televisão seguiu a onda. Para atrair mais as atenções, além da exibição do material, o programa televisivo mostrou como aconteceu o fato. Dando enfoque a produção televisiva com a utilização de Croma Key (tecnologia capaz de trocar um cenário de cor sólida por imagens captadas) e discorrendo sobre o estilo de lente utilizada naquela filmadora (a grande angular) que amplia o campo de visão e permite captar imagens panorâmicas devido ao aumento do ângulo da lente e a distância focal o que nesse caso deu um efeito gigantesco ao pássaro que passou muito próximo da máquina.
É a convergência entre televisão, internet e novamente televisão. Um exemplo, entre tantos outros de como vem ocorrendo esse processo. Todavia, vale o questionamento do quanto ele favorece a difusão audiovisual? Em outras palavras, de que maneira essa tecnologia disponível para convergir meios vem auxiliando no processo de divulgação de fatos ou de melhorias em favor do telespectador?

A convergência, por muitas vezes é motivada principalmente pelo valor do capital. Em busca da garantia de telespectadores e por conseqüência de financiamento para seus produtos os veículos buscam se inserir cada vez em mais mercados diversos. É como se fosse uma busca incessante pelo que chama mais atenção. Se os olhares estão para internet, não basta lutar por esse espaço, vale também incorporar ele na rotina antes estabelecida. Quando o programa busca trabalhar em cima de um vídeo que teve quase 70 mil espectadores, ele busca garantir também a sua audiência para continuar contado com seus financiadores e dessa forma garantir seu posto.

Não me refiro a algum problema que venha acontecendo, mas a um ponto de reflexões. Há uma tendência em pensar que o tecnológico traz mais condições para a produção informacional, entretanto, nem sempre esse é o fator condicionante, vale pensar no motivo gerador da produção para compreender as questões abordadas. Nesses casos a informação passa ao segundo plano, e o público espectador, ainda comporta-se como no tempo do iluminismo referido por Kant, onde a pensamento é moldado por terceiros que conduzem as rédeas da vida da grande massa.

Nesse sentido Kant afirma que a menoridade quando feita uma escolha pessoal, e não uma falta de capacidade para compreensão e distinção do que é bom e útil, é culpa do próprio cidadão. Aqueles que têm a capacidade de refletir sobre os aspectos abordados e perceber a falta de conteúdo e a adoção da tecnologia pela tecnologia também são responsáveis pela informação que é passada ao conjunto social.
Referente aos profissionais e empresas de comunicação essa responsabilidade passa a ser ainda maior. Quando se trata de televisão, tomando de empréstimo as palavras de Kant, “é, pois, difícil a cada homem depreender-se da menoridade que para ele se tornou/quase uma natureza. Até lhe ganhou amor e é por agora realmente incapaz de se servir do seu próprio entendimento, porque nunca lhe permitiu fazer uma tal tentativa” Ou seja, é difícil fazer a crítica e principalmente torná-la prática. Tomar decisões que mobilizem profundamente nas estruturas fazendo um movimento no cotidiano social capaz de buscar um novo modo de produção que corresponda aquilo que acredita-se necessário e não aquilo que acostumou-se a ver.

Com a convergência esse processo torna-se ainda mais complexo. A produção passa a ser em maior escala - aumenta e muito a facilidade de publicação de conteúdos, que através do domínio de técnicas é possível a publicação de notícias a cada instante em diversos suportes - e desse modo as notícias incorporada em reportagens ou programas superficiais perpassam o mundo, não pela sua força intelectual, mas pelo mais variados apelos atrativos ao grande público e apoiado pelas elites da comunicação que a publicam com a justificativa de ser da vontade social. E esses “novos preconceitos, justamente como os antigos, servirão de rédeas à grande massa destituída de pensamento”.

As teorias elaboradas perante as condições do período do iluminismo também bordam o contexto midiático atual. É pela precariedade da construção da informação que se faz necessário um espaço de crítica. O que está sendo feito é pela construção de uma qualidade comunicacional ou pela força vantajosa do capital equivalente da audiência? É preciso que as massas tomem conta da menoridade que as faz caminhar dependentes e passem a aproveita-se das facilidades da convergência para ser agente da sua própria trajetória.

Da mesma forma que uma empresa de comunicação apropria-se de um vídeo com baixo teor de informação útil, essa pode buscar outro tipo de conteúdos de acordo com o que o público passe a exigir. Com a internet é possível maior interação e dessa maneira o usuário mais consciente pode postar seus próprios vídeos, ou opinar naquilo que mais lhe agrada. A internet é esse espaço aberto que já está condicionando a lógica informacional.

Entretanto, com as diversas possibilidades, abre-se um espaço para uma nova televisão, que ainda não foi difundida plenamente devido às barreiras ainda encontradas, como a baixa velocidade de conexão que causa travamentos ou tempo demasiadamente grande para serem carregados no computador do usuário. Essa longa espera pelo carregamento, ou os pulos de imagens e áudio são motivos fortes para não fidelizar a audiência. Outro elemento, que requer muita reflexão e investimento, é a expansão quanti-qualitativa da educação tradicional-digital, formando cidadãos cognitivamente aptos e motivados a buscar na internet conteúdos diferenciados, com relação ao modelo das indústrias culturais.

Essa diferenciação, no quesito escolha, ainda não faz parte do cotidiano social. Os usuários ainda estão muito ligados ao modelo de fluxo e de poucas escolhas (menoridade). Em um país, onde a maior parte da população ainda utiliza somente televisão aberta, essa passagem para um formato onde a grade de programação pode depender do usuário ainda causa estranhamento ligado a falta de desprendimento para um pensar por si só. Dessa maneira, não é possível somente julgar os cidadãos, mas sim é preciso que haja um processo de formação, para que se sintam capacitados a optar sem essa educação é provável que mesmo com as diversas possibilidades os usuários sigam pacíficos e sem interagir com a comunicação audiovisual recebendo o produto ofertado sem maiores reflexões.

_________________________________________________
Por Maíra Bittencourt, Mestranda em Ciências da Comunicação na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Jornalista, graduada em Comunicação Social – hab. Jornalismo. pela Universidade Católica de Pelotas. bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e membro do Grupo de Pesquisa CEPOS (apoiado pela Ford Foundation).
Leia mais...

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

De espetáculos, algemas...

De espetáculos, algemas e silenciamentos: pode o jornalismo conduzir à maioridade?

Kant definia o Iluminismo como a saída do homem de sua minoridade - “a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem“. Alguns autores, como Moretzsohn, enxergam no jornalismo um rastro do ideal iluminista; de fato, é perceptível um ethos jornalístico voltado ao esclarecimento da opinião pública, à busca pela verdade. Trazer os fatos à tona: que os leitores formem seus juízos e tirem suas conclusões.

O ideal seria facilmente contemplado não fossem os limites da atividade. Premido em lógicas de produção próprias, o jornalismo é acusado de superficial, fragmentado (o jornalismo-mosaico de Mar de Fontcuberta), espetacular, escandaloso. Capaz de silenciamentos, de desvios. Àqueles que acreditam que o jornalismo é um espelho da realidade, tudo isto é explicável pelo contexto social apenas. Aqueles que, como sugere Foucault, optam por uma atitude crítica, dando-se o direito de interrogar sobre a verdade dos efeitos de poder e sobre o poder dos efeitos de verdade nos discursos, vão buscar o sentido destas acusações nas lógicas e éticas próprias da estrutura significante.

Escândalos são acontecimentos interessantes para este percurso crítico. Eles afloram, com sua dinâmica própria, interesses de variados campos, como sugere Thompson. A visibilidade alcançada através do jornalismo faz perceber valores de noticiabilidade e outros critérios de seleção e enquadramento usados. A forma como o acontecimento é tratado na mídia pode influir em seu próprio devir.

Assim foi com a operação Satiagraha, em 2008. Deflagrada pela Polícia Federal para desmontar um esquema de desvio de verbas públicas, corrupção e lavagem de dinheiro, sua forma de aparição midiática (um vazamento, que depois ficou caracterizado como colaboração com jornalistas da Rede Globo de Televisão) contribuiu para os rumos e visibilidades do acontecimento. Um mês após a operação, o que era discutido com veemência nos espaços opinativos não eram os esquemas de corrupção, mas o uso de algemas. No cerne deste sub-acontecimento, imagens do ex-prefeito Celso Pitta e do empresário Naji Nahas - exclusivas da Rede Globo - com casacos tapando as mãos, no dia em que foram presos com outras 22 pessoas, entre elas, o banqueiro Daniel Dantas, dono do Opportunity.

De fato, a polêmica surtiu efeito: em 13 de agosto de 2008, o Supremo Tribunal Federal editou uma súmula vinculante restringindo o uso de algemas pela polícia. Alguns juízes, indignados, apelidaram o instrumento de “súmula Cacciola-Dantas” a marca da visibilidadea da Satiagraha lá estava. Dantas sequer fora visto com o casaco sob as mãos, enquanto o banqueiro Salvatore Cacciola foi beneficiado em seu retorno ao Brasil por um habeas-corpus do Supremo Tribunal de Justiça (STJ): não foi algemado ao chegar ao país em julho de 2008, em meio à polêmica provocada pela operação Satiagraha. Cacciola foi condenado a 13 anos de prisão por desvio de dinheiro público e gestão fraudulenta, estava foragido, foi preso em Mônaco e extraditado para o Brasil. Sem algemas.
O que explica a sobrevalorização de um sub-acontecimento a partir de outro tema, parecendo desviar o foco do debate público?

Vontade de adesão, medo de exclusão. Um desejo de aprovação nos move em direção a idéias e sentimentos publicamente majoritários, considerados dominantes. O resto parece confluir gradativamente em uma espiral de silenciamento, como ensina Noëlle-Neumann. A teoria, criada a partir da observação de comportamentos eleitorais, pode servir também como hipótese para a tendência a acompanhar a opinião e os temas publicamente prevalecentes. Espirais de silêncio aparecem e refluem em situações variadas, e estão relacionadas a climas de opinião. Um viés, um ponto incomum, às vezes um detalhe pode ganhar dimensões públicas exageradas, e momentaneamente retirar de cena ou envolver em uma cortiça de fumaça o que parece ser mais relevante. Neste calar somos voluntariamente (re?)conduzidos a uma minoridade kantiana. Parece cômodo deixar que sábios – no caso das algemas, juristas e jornalistas - pensem por nós.

Pensar nas algemas e não na corrupção é um desvio no acontecimento Satiagraha, provocado por sua aparição midiática. “Ainda estava escuro quando os policias saíram para cumprir as ordens de prisão”, nos conta o repórter César Tralli. No vídeo, as imagens são de caminhonetes da Polícia Federal partindo para a operação. Assim fomos informados pelo Jornal Hoje da Rede Globo de Televisão, no dia oito de julho de 2008, da operação. A introdução da matéria levava aos telespectadores a um nível testemunhal: de fato, houve exclusividade da emissora na captura de imagens que nos colocaram lado a lado com os policias na operação. Assistimos, em primeira mão, policiais aguardando o elevador no prédio do banqueiro Daniel Dantas. Na mansão do empresário Naji Nahas, acompanhamos o cerco realizado pela polícia. Os seguranças negam-se a abrir os portões; policiais escalam o muro e esbravejam: “abre este negócio logo. Abre a porta que eu sou delegado. Você vai preso”. Nahas é preso em casa, e só assistimos a saída dos carros.



“Perto dali, outro flagrante”, nos narra Tralli. “Policiais tocam a campainha, e quem abre é o ex-prefeito Celso Pitta, que não resiste à prisão”. Pitta aparece de pijamas brancos na porta de sua casa. Em seguida, uma imagem do ex-prefeito entrando no prédio do Instituto Médico Legal, com um casaco tapando as mãos.

As imagens exclusivas são repetidas nas edições daquele dia do Jornal Nacional e do Jornal da Globo, da mesma emissora, e já trazem reações. No JN, uma nota do juiz Fausto de Sanctis dá o tom defensivo: “não se trata de uma medida midiática, mas absolutamente indispensável para uma apuração séria e criteriosa, buscando a eficácia das investigações”.

No Jornal da Globo, a insistência nas algemas. “Nesta noite, as equipes da TV Globo flagraram Naji Nahas saindo algemado do Instituto Médico Legal, onde passou por exame para atestar as boas condições de saúde” é o off do repórter no trecho da matéria mostrando imagens de Nahas com casaco tapando as mãos. O jornal também complementa a notícia com o posicionamento dos advogados dos três principais presos. O primeiro a falar em excessos é o advogado Nélio Machado, em coletiva:

desde que se inaugurou esta tendência de resolver tudo mediante operação judicial, e não por procedimento judicial, com as garantias fundamentais, não é incomum que existam excessos, que existam exageros. A constituição da República manda preservar a imagem, a honra, garante inocência, a presunção de não culpabilidade, a prova tem que ser legal, ela não pode vazar, tudo isso está se fazendo à margem da lei.

Não foi o único. Na mesma edição, o telejornal traz declaração do ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes:

De novo é um quadro de espetacularização das prisões. Isso é evidente. Dificilmente compatível com o estado de direito. O uso de algema abusivo, nós já falamos sobre isso aqui, né, mas tudo isso terá que ser discutido.



Assim as algemas entraram no acontecimento. Derrapantes, no signo eloqüente do casaco que esconde. Abuso, espetacularização: tudo é creditado à Polícia Federal, não à imprensa. Na linha deste discurso, as algemas ganharão força. Mas a fala do presidente do STF é enviesada: afinal, quem não quer o espetáculo? Categoria chave para um entendimento crítico dos sentidos ensejados, o espetáculo se afirma em uma lógica produtiva da mídia e em uma lógica de visibilidade desejada pelas demais instituições.

Pela mídia, e pelo jornalismo, sabemos que um tema com maior repercussão é mais notícia. Por repercussão, entende-se o que Lorenzo Gomis chama do espaço de conversação, de comentário, onde as notícias veiculadas pela mídia podem influir nas atitudes e condutas pessoais, ou pelo menos pautar suas interações sociais. Esta repercussão é o que garante, de acordo com o autor, o efeito de notícia, que pode perdurar para além da saída do acontecimento da zona de visibilidade midiática.

Logo, o registro da intensidade é desejado (e os escândalos são um rico material para isto). A intensidade é da ordem da sensação: a lógica do discurso da mídia prevê não apenas informar, mas também atrair a audiência, como explica Charaudeau, para quem o contrato de comunicação midiática estabelece um tensionamento permanente entre duas visadas, a de fazer saber (ou de informação), e a de fazer sentir (ou de captação). Uma busca informar o cidadão, a outra, captar a audiência, fisgando-a pela emoção.

Podemos nos questionar, então, qual seria a necessidade de vermos policiais escalando muros, se a informação seria a mesma: fulano foi preso. O testemunho das imagens colhidas no momento exato da operação nos permite saber mais sobre o acontecimento, com toda a edição feita para valorizar a exclusividade? Será que a insistência nas algemas, sugeridas tantas vezes nas imagens dos casacos carregados e nos textos, não nos condena a uma minoridade guiada por um fazer crer jornalístico, capitaneando espirais de silenciamento? Será que o jornalismo, em seu ideal iluminista, pode abrir brechas a uma maioridade, mesmo ensejando sub-acontecimentos, a partir de sua maneira de dar a ver um acontecimento?

Para Kant, a exigência maior para a saída da minoridade é a liberdade, na forma do uso público da razão. Mesmo no sub-acontecimento das algemas, deslocando o debate sobre a corrupção para um silenciamento, duas observações devem ser feitas. A primeira é de que o tema se impôs, e depois também saiu da esfera de debate público. Climas de opinião se conformam e refluem, o mundo é dinâmico. A segunda, é de que mesmo no debate sobre o uso de algemas, há fontes que fizeram uso público da razão: a versão de que o tema era um subtefúrgio da defesa dos acusados apareceu aqui e ali , diretamente, em entrelinhas. Se temos mosaicos, havemos de recompô-los: para acontecimentos mais espalhados no tempo, a cobertura tende a ser maior, mais diversa.

Isto quer dizer que sim, em uma atitude corajosa (como a exigida por Kant, de desacomodação), podemos sair da minoridade com o que é produzido pelo jornalismo sobre um acontecimento. Requer esforço. Há que se sair do quadro de exclusividade, que se procurar outras fontes de informação, outros veículos, recortes, enquadramentos. Isto possibilita questionar, como no exemplo da Satiagraha, por que outros silenciamentos, talvez ainda mais relevantes, existiram (ausências também são percebidas e deixam suas marcas). Um deles é porque a colaboração entre mídia e Polícia Federal - que além do vazamento se caracterizou por gravações sigilosas antes da operação, no período de investigações - é perturbadora apenas para a instituição policial, causando sua danação pública. Por que o jornalismo não foi questionado em seus procedimentos e atuação? Por que insistimos em permanecer na minoridade das práticas jornalísticas?

_________________________________________________________
Por Marja Pfeifer Coelho, jornalista, mestre e doutoranda em Comunicação e Informação pela UFRGS.
Leia mais...
 

Ensaios Críticos Copyright © 2009 WoodMag is Designed by Ipietoon for Free Blogger Template