segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

As três críticas

Os textos produzidos para este blog foram inspirados no que podemos chamar de três modelos de crítica: kantiana, foucaultiana e barthesiana, tendo como base a forma como cada um dos autores em questão respondem à pergunta “o que é a crítica”. Tentaremos esboçar em linhas gerais cada uma das perspectivas, estabelecendo relações transversais entre as mesmas no intuito de resgatarmos as contribuições destas para uma crítica das práticas jornalísticas.

O modelo de crítica proposta por Immanuel Kant num primeiro momento parece condicionado ao contexto filosófico e ao momento histórico no qual ele se insere. No entanto, demonstra relevância atemporal ao enfatizar a necessidade do pleno exercício da liberdade intelectual, que fundamenta a experiência moderna e se traduz no cerne da proposta iluminista. O texto também representa o início da filosofia dita moderna, pois pela primeira vez volta-se para a atualidade e sobre ela debruça o foco de suas questões, conforme bem caracteriza Foucault (1984) em leitura do texto kantiano. A percepção do autor deixa claro que, muito além de um episódio inaugural da modernidade europeia, o iluminismo representa uma questão filosófica que tenta ser respondida até os dias de hoje, persistindo como processo permanente que atravessa toda a filosofia pós-Kant (idem, p. 8). No final do texto, Foucault aponta as duas tradições críticas que dividem a filosofia moderna – uma analítica da verdade e uma analítica da atualidade – como herdeiras do pensamento kantiano e oriundas das reflexões sobre Aufklärung.

Michel Foucault (1990) aproxima seu conceito de crítica à definição do esclarecimento (Aufklärung) elaborada por Kant (1990), que percebe este enquanto oposição à menoridade, entendida como incapacidade que deriva por um lado do excesso de autoridade por parte de quem detém o poder, e por outro, da falta de decisão e coragem por parte dos governados. Portanto, as perspectivas críticas dos dois autores estão bastante próximas, embora Foucault acrescente à sua conceitualização uma proposta metodológica de investigação histórica-filosófica, a acontecimentalização, e Kant venha a retrabalhar a questão do Aufklärung anos mais tarde, em repercussão aos desdobramentos da Revolução Francesa. Em Foucault, a entrada na questão do esclarecimento se dá, portanto, a partir do método genealógico, que prescreve o entendimento das condições que possibilitam o surgimento e a permanência das práticas discursivas, objetivando estabelecer relações entre os saberes através de diferentes épocas e campos do conhecimento. ´Trata-se do “acoplamento do conhecimento com as memórias locais, eu permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táticas atuais” (FOUCAULT, 2003: 171).

Desse modo, Foucault situa sua concepção da Aufklärung no processo de governamentalização da sociedade europeia, retomando o que ele chama de “explosão” desta com movimento da Reforma protestante, bem como os desdobramentos posteriores. Ele trabalha seu conceito de crítica (o autor prefere falar em uma “atitude crítica”) como reação a este processo, compreendendo a governamentalização como prática social de sujeitar os indivíduos através de mecanismos de poder, surgindo daí sua primeira definição de crítica como “a arte de não ser governado”. A crítica seria portanto uma “inservidão voluntária”, uma atitude através da qual o sujeito se dá o direito de questionar “a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade” (FOUCAULT, 1990: 5). Neste sentido, a crítica poderia ser colocada como atitude moral e política dos sujeitos, pontuada face a uma relação de poder.

Já Roland Barthes (2002) contribui para uma percepção da crítica diferenciada, pois parte de um espaço distinto da filosofia, trabalhando o foco a partir da linguagem e tendo como objeto preferencial a crítica literária. A perspectiva barthesiana não contradiz as percepções de crítica partilhadas por Kant e Foucault, mas traduz uma visada da problemática a partir de outras angulações. De certa forma, poderíamos inserir a concepção barthesiana de crítica naquilo que Foucault chama de “pequenas atividades polêmico-profissionais”, pois origina-se numa problemática regionalizada, a da crítica literária. No entanto, é possível retirar da reflexão de Barthes concepções mais gerais sobre crítica, na medida em que podem ser estendidas por homologia a outros âmbitos além da literatura, como, por exemplo, o jornalismo.

Barthes (2002) concebe o objeto da crítica como não sendo o mundo, mas o discurso sobre um outro – um discurso sobre um discurso ou metalinguagem. Desse modo, o atrito entre a linguagem crítica e a linguagem do outro constituem a atividade crítica, que busca não estabelecer verdades, mas validades referentes à coerência do sistema de signos em questão. A tarefa da crítica é formal: ajustar a linguagem que lhe fornece sua época ao sistema formal de constrangimentos lógicos elaborados pelo autor, segundo o momento histórico no qual ele se insere. No entanto, o foco da crítica é atemporal, pois o diálogo que ela estabelece entre o autor e sua própria subjetividade volta-se para o presente. A crítica, segundo Barthes, “não é uma ‘homenagem’ à verdade do passado, ou à verdade do ‘outro’, mas a construção do inteligível do nosso tempo” (BARTHES, 2002: 352, tradução nossa).

A concepção barthesiana de crítica enquanto metalinguagem, na qual o objeto da crítica não é o discurso, parece complementar-se com a percepção foucaultiana da crítica como instrumento. Nas palavras de Foucault (1990: 2): “(...) a crítica existe apenas em relação a outra coisa que não ela mesma: ela é instrumento, meio para um devir ou uma verdade que ela não saberá e que ela não será, ela é um olhar sobre um domínio onde quer desempenhar o papel de polícia e onde não é capaz de fazer a lei”. Essa “lei”, em termos barthesianos representaria o domínio do “outro”, externa portanto a crítica que por definição deve estar voltada ao discurso sobre este “outro”.

Para Foucault, a crítica vai além de um tipo de atitude do sujeito – “uma certa maneira de pensar, de dizer, de agir igualmente” – para englobar “uma certa relação com o que existe, com o que se sabe, o que se faz, uma relação com a sociedade, com a cultura, uma relação com os outros também” (1990:1). Desse modo, podemos dizer que a definição foucaultiana acrescenta outras tonalidades em relação à de Barthes, quando esse entendia a crítica como resultante da fricção entre linguagens, da linguagem crítica à linguagem do autor observado e da relação da linguagem-objeto ao mundo. Foucault pensa a relação de forma mais ampla, envolvendo a trama das relações múltiplas entre saber e poder que o autor retoma através do método genealógico.
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Transparece nas três leituras a preocupação da crítica para com a atualidade, e talvez por isso estas percepções sobre crítica pareçam tão caras ao jornalismo e guardem tanta potencialidade para se trabalhar uma crítica das práticas jornalísticas. Rememorando o que Foucault caracterizava como as duas grandes vertentes kantianas da filosofia moderna, a analítica da verdade e da atualidade, também podemos focalizar a partir desses dois prismas a realização de uma crítica sobre o jornalismo. Essa dupla articulação entre verdade e atualidade que embasa o jornalismo em sua concepção clássica – caso nunca tenha existido, ao menos tem funcionado enquanto ideal imperativo – transparece como elemento chave da atitude crítica dos teóricos, sobretudo quando enfocam o impacto das chamadas novas tecnologias na atividade jornalística (KAPUSCINSKI, 2007; RAMONET, 2001), que constituem o maior desafio deste campo em nossos dias.

A perspectiva kantiana faz sentido no universo do jornalismo, pois o próprio surgimento do jornalismo está vinculado ao ideal do esclarecimento de sair da menoridade. Aliás, não é mera coincidência que este manifesto do esclarecimento tenha sido publicado na imprensa, confirmando o papel deste na divulgação do ideário iluminista e a posição de destaque que viria a desempenhar no processo de desconstrução do monopólio do saber e do poder antes confinado aos domínios da Igreja. Surge aí o mito da transparência, que marca de forma capital o exercício da atividade jornalística e que transforma esta na prática que conhecemos hoje, “obstinada em vasculhar todos os espaços privados na busca de uma difusão pública, num pretenso interesse da própria sociedade” (MARCONDES FILHO, 2002: 21). Contudo, embora a transparência persista como princípio essencial do jornalismo, o esclarecimento enquanto ato de sair da menoridade continua tão imperativo e utópico quanto era em 1784, data da publicação do texto de Kant (como tenta mostrar o texto de Marja Coelho, neste blog).

A contribuição de Barthes sobre a crítica literária pode ser aplicada por homologia à crítica jornalística, ao entendermos esta como resultante da relação entre duas linguagens: a linguagem crítica e a linguagem do jornalismo. Ao conceitualizar a crítica enquanto a “construção do inteligível do nosso tempo”, o autor sublinha o imperativo da crítica de estar constantemente voltada ao presente, por mais que esteja circunscrita a um objeto do passado.

Por este viés, a crítica do jornalismo não estaria apenas restrita ao âmbito interno enquanto “pequena atividade polêmico-profissional”, para utilizar uma expressão foucaultiana, mas residiria nela uma potencialidade de compreender nosso presente social como um todo, sobretudo pela centralidade que o jornalismo e os media assumem na atualidade. Um exemplo disso seria a leitura que José Miguel Wisnik (1992) faz da obra-prima de Balzac, ao relacioná-la ao tempo presente de sua crítica através de uma breve reflexão sobre ética e imprensa num dentre outros tantos episódios da era Collor. Dessa forma, o interesse da crítica não recai somente ao universo balzaquiano, mas ao modo como a obra representa “uma atitude existencial e discursiva que tem força de paradigma e, assim, se realimenta do próprio real, que muitas vezes a imita com insistência e clareza espantosas” (WISNIK, 1992: 339), presente em nossa imprensa tanto no jornalismo do século XIX como em nossos dias.

Talvez Foucault (1990: 2) aponte uma pista interessante para se entender a crítica do jornalismo na síntese do que entende por atitude crítica “(...) quais que sejam os prazeres ou as compensações que acompanham essa curiosa atividade de crítica, parece que ela traz, de modo suficientemente regular, quase sempre, não somente alguma rigidez de utilidade que ela reivindica, mas também que ela seja subtendida por uma sorte de imperativo mais geral - mais geral ainda que aquela de afastar os erros. Há alguma coisa na crítica que se aparenta à virtude. E de uma certa maneira, o que eu gostaria de dizer a vocês era da atitude crítica como virtude em geral.”

É em direção a esse senso de virtude que se movem os “ensaios críticos” que constituem este blog, na tentativa de incorporar aos nossos objetos de pesquisa uma crítica das práticas jornalísticas que colabore para traduzir o espírito de nosso tempo.
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Por Aline Roes Dalmolin, Doutoranda e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Jornalista pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Seu texto não constitui uma crítica, mas traz os aportes de cada uma das perspectivas, retrabalhando-as sob a ótica de uma crítica das práticas jornalísticas

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