sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

De espetáculos, algemas...

De espetáculos, algemas e silenciamentos: pode o jornalismo conduzir à maioridade?

Kant definia o Iluminismo como a saída do homem de sua minoridade - “a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem“. Alguns autores, como Moretzsohn, enxergam no jornalismo um rastro do ideal iluminista; de fato, é perceptível um ethos jornalístico voltado ao esclarecimento da opinião pública, à busca pela verdade. Trazer os fatos à tona: que os leitores formem seus juízos e tirem suas conclusões.

O ideal seria facilmente contemplado não fossem os limites da atividade. Premido em lógicas de produção próprias, o jornalismo é acusado de superficial, fragmentado (o jornalismo-mosaico de Mar de Fontcuberta), espetacular, escandaloso. Capaz de silenciamentos, de desvios. Àqueles que acreditam que o jornalismo é um espelho da realidade, tudo isto é explicável pelo contexto social apenas. Aqueles que, como sugere Foucault, optam por uma atitude crítica, dando-se o direito de interrogar sobre a verdade dos efeitos de poder e sobre o poder dos efeitos de verdade nos discursos, vão buscar o sentido destas acusações nas lógicas e éticas próprias da estrutura significante.

Escândalos são acontecimentos interessantes para este percurso crítico. Eles afloram, com sua dinâmica própria, interesses de variados campos, como sugere Thompson. A visibilidade alcançada através do jornalismo faz perceber valores de noticiabilidade e outros critérios de seleção e enquadramento usados. A forma como o acontecimento é tratado na mídia pode influir em seu próprio devir.

Assim foi com a operação Satiagraha, em 2008. Deflagrada pela Polícia Federal para desmontar um esquema de desvio de verbas públicas, corrupção e lavagem de dinheiro, sua forma de aparição midiática (um vazamento, que depois ficou caracterizado como colaboração com jornalistas da Rede Globo de Televisão) contribuiu para os rumos e visibilidades do acontecimento. Um mês após a operação, o que era discutido com veemência nos espaços opinativos não eram os esquemas de corrupção, mas o uso de algemas. No cerne deste sub-acontecimento, imagens do ex-prefeito Celso Pitta e do empresário Naji Nahas - exclusivas da Rede Globo - com casacos tapando as mãos, no dia em que foram presos com outras 22 pessoas, entre elas, o banqueiro Daniel Dantas, dono do Opportunity.

De fato, a polêmica surtiu efeito: em 13 de agosto de 2008, o Supremo Tribunal Federal editou uma súmula vinculante restringindo o uso de algemas pela polícia. Alguns juízes, indignados, apelidaram o instrumento de “súmula Cacciola-Dantas” a marca da visibilidadea da Satiagraha lá estava. Dantas sequer fora visto com o casaco sob as mãos, enquanto o banqueiro Salvatore Cacciola foi beneficiado em seu retorno ao Brasil por um habeas-corpus do Supremo Tribunal de Justiça (STJ): não foi algemado ao chegar ao país em julho de 2008, em meio à polêmica provocada pela operação Satiagraha. Cacciola foi condenado a 13 anos de prisão por desvio de dinheiro público e gestão fraudulenta, estava foragido, foi preso em Mônaco e extraditado para o Brasil. Sem algemas.
O que explica a sobrevalorização de um sub-acontecimento a partir de outro tema, parecendo desviar o foco do debate público?

Vontade de adesão, medo de exclusão. Um desejo de aprovação nos move em direção a idéias e sentimentos publicamente majoritários, considerados dominantes. O resto parece confluir gradativamente em uma espiral de silenciamento, como ensina Noëlle-Neumann. A teoria, criada a partir da observação de comportamentos eleitorais, pode servir também como hipótese para a tendência a acompanhar a opinião e os temas publicamente prevalecentes. Espirais de silêncio aparecem e refluem em situações variadas, e estão relacionadas a climas de opinião. Um viés, um ponto incomum, às vezes um detalhe pode ganhar dimensões públicas exageradas, e momentaneamente retirar de cena ou envolver em uma cortiça de fumaça o que parece ser mais relevante. Neste calar somos voluntariamente (re?)conduzidos a uma minoridade kantiana. Parece cômodo deixar que sábios – no caso das algemas, juristas e jornalistas - pensem por nós.

Pensar nas algemas e não na corrupção é um desvio no acontecimento Satiagraha, provocado por sua aparição midiática. “Ainda estava escuro quando os policias saíram para cumprir as ordens de prisão”, nos conta o repórter César Tralli. No vídeo, as imagens são de caminhonetes da Polícia Federal partindo para a operação. Assim fomos informados pelo Jornal Hoje da Rede Globo de Televisão, no dia oito de julho de 2008, da operação. A introdução da matéria levava aos telespectadores a um nível testemunhal: de fato, houve exclusividade da emissora na captura de imagens que nos colocaram lado a lado com os policias na operação. Assistimos, em primeira mão, policiais aguardando o elevador no prédio do banqueiro Daniel Dantas. Na mansão do empresário Naji Nahas, acompanhamos o cerco realizado pela polícia. Os seguranças negam-se a abrir os portões; policiais escalam o muro e esbravejam: “abre este negócio logo. Abre a porta que eu sou delegado. Você vai preso”. Nahas é preso em casa, e só assistimos a saída dos carros.



“Perto dali, outro flagrante”, nos narra Tralli. “Policiais tocam a campainha, e quem abre é o ex-prefeito Celso Pitta, que não resiste à prisão”. Pitta aparece de pijamas brancos na porta de sua casa. Em seguida, uma imagem do ex-prefeito entrando no prédio do Instituto Médico Legal, com um casaco tapando as mãos.

As imagens exclusivas são repetidas nas edições daquele dia do Jornal Nacional e do Jornal da Globo, da mesma emissora, e já trazem reações. No JN, uma nota do juiz Fausto de Sanctis dá o tom defensivo: “não se trata de uma medida midiática, mas absolutamente indispensável para uma apuração séria e criteriosa, buscando a eficácia das investigações”.

No Jornal da Globo, a insistência nas algemas. “Nesta noite, as equipes da TV Globo flagraram Naji Nahas saindo algemado do Instituto Médico Legal, onde passou por exame para atestar as boas condições de saúde” é o off do repórter no trecho da matéria mostrando imagens de Nahas com casaco tapando as mãos. O jornal também complementa a notícia com o posicionamento dos advogados dos três principais presos. O primeiro a falar em excessos é o advogado Nélio Machado, em coletiva:

desde que se inaugurou esta tendência de resolver tudo mediante operação judicial, e não por procedimento judicial, com as garantias fundamentais, não é incomum que existam excessos, que existam exageros. A constituição da República manda preservar a imagem, a honra, garante inocência, a presunção de não culpabilidade, a prova tem que ser legal, ela não pode vazar, tudo isso está se fazendo à margem da lei.

Não foi o único. Na mesma edição, o telejornal traz declaração do ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes:

De novo é um quadro de espetacularização das prisões. Isso é evidente. Dificilmente compatível com o estado de direito. O uso de algema abusivo, nós já falamos sobre isso aqui, né, mas tudo isso terá que ser discutido.



Assim as algemas entraram no acontecimento. Derrapantes, no signo eloqüente do casaco que esconde. Abuso, espetacularização: tudo é creditado à Polícia Federal, não à imprensa. Na linha deste discurso, as algemas ganharão força. Mas a fala do presidente do STF é enviesada: afinal, quem não quer o espetáculo? Categoria chave para um entendimento crítico dos sentidos ensejados, o espetáculo se afirma em uma lógica produtiva da mídia e em uma lógica de visibilidade desejada pelas demais instituições.

Pela mídia, e pelo jornalismo, sabemos que um tema com maior repercussão é mais notícia. Por repercussão, entende-se o que Lorenzo Gomis chama do espaço de conversação, de comentário, onde as notícias veiculadas pela mídia podem influir nas atitudes e condutas pessoais, ou pelo menos pautar suas interações sociais. Esta repercussão é o que garante, de acordo com o autor, o efeito de notícia, que pode perdurar para além da saída do acontecimento da zona de visibilidade midiática.

Logo, o registro da intensidade é desejado (e os escândalos são um rico material para isto). A intensidade é da ordem da sensação: a lógica do discurso da mídia prevê não apenas informar, mas também atrair a audiência, como explica Charaudeau, para quem o contrato de comunicação midiática estabelece um tensionamento permanente entre duas visadas, a de fazer saber (ou de informação), e a de fazer sentir (ou de captação). Uma busca informar o cidadão, a outra, captar a audiência, fisgando-a pela emoção.

Podemos nos questionar, então, qual seria a necessidade de vermos policiais escalando muros, se a informação seria a mesma: fulano foi preso. O testemunho das imagens colhidas no momento exato da operação nos permite saber mais sobre o acontecimento, com toda a edição feita para valorizar a exclusividade? Será que a insistência nas algemas, sugeridas tantas vezes nas imagens dos casacos carregados e nos textos, não nos condena a uma minoridade guiada por um fazer crer jornalístico, capitaneando espirais de silenciamento? Será que o jornalismo, em seu ideal iluminista, pode abrir brechas a uma maioridade, mesmo ensejando sub-acontecimentos, a partir de sua maneira de dar a ver um acontecimento?

Para Kant, a exigência maior para a saída da minoridade é a liberdade, na forma do uso público da razão. Mesmo no sub-acontecimento das algemas, deslocando o debate sobre a corrupção para um silenciamento, duas observações devem ser feitas. A primeira é de que o tema se impôs, e depois também saiu da esfera de debate público. Climas de opinião se conformam e refluem, o mundo é dinâmico. A segunda, é de que mesmo no debate sobre o uso de algemas, há fontes que fizeram uso público da razão: a versão de que o tema era um subtefúrgio da defesa dos acusados apareceu aqui e ali , diretamente, em entrelinhas. Se temos mosaicos, havemos de recompô-los: para acontecimentos mais espalhados no tempo, a cobertura tende a ser maior, mais diversa.

Isto quer dizer que sim, em uma atitude corajosa (como a exigida por Kant, de desacomodação), podemos sair da minoridade com o que é produzido pelo jornalismo sobre um acontecimento. Requer esforço. Há que se sair do quadro de exclusividade, que se procurar outras fontes de informação, outros veículos, recortes, enquadramentos. Isto possibilita questionar, como no exemplo da Satiagraha, por que outros silenciamentos, talvez ainda mais relevantes, existiram (ausências também são percebidas e deixam suas marcas). Um deles é porque a colaboração entre mídia e Polícia Federal - que além do vazamento se caracterizou por gravações sigilosas antes da operação, no período de investigações - é perturbadora apenas para a instituição policial, causando sua danação pública. Por que o jornalismo não foi questionado em seus procedimentos e atuação? Por que insistimos em permanecer na minoridade das práticas jornalísticas?

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Por Marja Pfeifer Coelho, jornalista, mestre e doutoranda em Comunicação e Informação pela UFRGS.

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