sábado, 23 de janeiro de 2010

As sombras de Lugo

Surgindo como novidade no cenário político latino-americano, Fernando Lugo foi ganhando notoriedade na instância midiática brasileira. O fato se deve não apenas a sua singular trajetória, ligada à igreja católica e a movimentos sociais populares, mas também ao conteúdo de suas principais propostas, algumas com conseqüências diretas para as relações bilaterais com Brasil. Os episódios mais recentes envolvendo o chefe de Estado paraguaio demonstram um cenário de incertezas e instabilidade, ao menos é essa a representação da maior parte dos meios de comunicação brasileiros e latino-americanos.

Lugo não goza de boa imagem na mídia hegemônica nacional que, em geral, alia a sua figura a fatos negativos e a lideranças políticas latino-americanas concebidas como anacrônicas e populistas, a exemplo dos presidentes Evo Morales e Hugo Chávez, respectivamente da Bolívia e da Venezuela. Ainda, há o tema da concentração de migrantes brasileiros no Paraguai, o qual explicita um quadro marcado pela permeabilidade da mídia brasileira no território paraguaio, levando os seus conteúdos, a sua visão dos fatos para uma audiência híbrida¹.

Depois de 62 anos de comando do Partido Colorado, no dia 20 de abril de 2008, o Paraguai assiste a uma verdadeira alternância de poder e se enche de esperança, por meio da chegada do bispo Fernando Lugo as mais altas funções do Estado. Em uma coligação sustentada pela Aliança Patriótica para a Mudança (APM), que congrega dez partidos políticos e vinte movimentos sociais articulados sob o Movimento Popular Tekojoja, configurando-se como um caso inédito na turbulenta história política do Paraguai.

Passado mais de um ano de sua vitória no pleito eleitoral paraguaio, o bispo que virou presidente se vê imerso em uma conjuntura marcada por dúvidas, desconfianças e isolamento. As notícias mais recentes vindas do país vizinho não apenas demonstram tal quadro, mas também dão conta da insatisfação dos partidos tradicionais do Paraguai, com o caráter popular e arrojado das ações de Lugo, levando a oposição a pronunciar abertamente o seu desejo de dar cabo ao governo do sacerdote, seguindo caminhos semelhantes ao de Honduras. E a mídia brasileira, como se comporta diante desses acontecimentos, como os retrata e os contextualiza? Busca contextualizá-los de fato, mantendo uma postura crítica, para além da objetivação, apresentando e conduzindo os acontecimentos de maneira ampla, integral e responsável?

Mais do que isso, construindo um modo de observar os fatos do presente, de forma a se distanciar de visões preconcebidas e superficiais, trazendo as cosmovisões dos que estão à margem e raramente são ouvidos? Enfim, trata-se de construir abordagens que contemplem realidades complexas, a exemplo do atual contexto de mudanças circunstanciais que vem ocorrendo em solo paraguaio.

Como Lugo tem sido apresentado pelas mídias?
No que tange aos antecedentes que levaram Lugo ao poder, visualizamos um importante componente da realidade observada – o Movimento Tekojoja, que significa “viver em igualdade”, no idioma Guarani, falado por grande parte da população paraguaia. Para além da coalizão de diversos partidos, esse movimento, exerce significativa influência nos rumos do governo paraguaio. Pertence a ele a formulação das diretrizes que fazem parte do programa de governo de Lugo e a orientação dos movimentos populares que compõem a base de apoio, como o campesino.

Assim, conseguimos dimensionar algumas das ações políticas empreendidas pelo governo Lugo, num cenário marcado pela heterogeneidade e a desconfiança, devido à composição das diferentes forças e partidos que fazem parte da APM, fazendo com que o governo paraguaio necessite do apoio popular para implementar as suas ações. Além disso, o presidente não possui a maioria no congresso e não dispõe de uma boa relação com o vice.

No enfoque dado pelas mídias brasileiras na construção dos acontecimentos relacionados ao presidente do Paraguai, observamos a recorrência de duas abordagens distintas – o hiperprotagonismo e o desmascaramento. Desse modo, as notícias enfocam ora a figura do presidente, ora o que estaria por trás das ações do chefe de Estado, seguindo respectivamente esses dois parâmetros.

Quando o foco está na figura de Lugo, há constantemente um movimento que ressalta a sua origem religiosa e outro de atrelá-lo a líderes populistas como Hugo Chavéz, Evo Morales e Rafael Correa. Na perspectiva do desmascaramento, ocorre uma abordagem centrada nos supostos interesses que levariam Lugo a tomar certas decisões e empreender determinadas ações que, na construção das mídias brasileiras, quase sempre ferem os interesses nacionais do Brasil.

Diante desse quadro, visualiza-se uma abordagem rasa, desconexa dos aspectos sociais, culturais e políticos que permeiam o presente do Paraguai. Sobretudo, construída com a finalidade de promover uma crítica à política externa do governo brasileiro que, na ótica dos meios de comunicação, seria frouxa e subserviente aos países vizinhos, desde o episódio da nacionalização dos hidrocarbonetos bolivianos. Nesse sentido, o governo brasileiro, segundo a mídia nacional, estaria distanciando o país da condição de nação líder da América Latina e deixando esse papel nas mãos de Hugo Chávez.

Assim, Lugo caminha a contrapelo do modelo neoliberal de reforma do Estado e promove ações “populistas” e “anacrônicas”, como a defesa de uma reforma agrária e o embate pela renegociação do Tratado de Itaipu com o Brasil, vizinho e parceiro de longa data. Segundo Maurício Thuswohl, em artigo publicado na Agência Carta Maior, algumas medidas empreendidas pelo novo governo paraguaio para, por exemplo, combater o contrabando e a sonegação de impostos, atingiram em cheio os interesses de setores do legislativo e do judiciário, além de, por incrível que pareça, sofrerem oposição de setores da mídia do Paraguai.

Diante disso, o jornalista observa que o governo brasileiro deve tratar o Paraguai como um parceiro/sócio e não como um pátio dos fundos, postura recorrente até hoje e defendida por significativa parcela da grande mídia do país e pelos partidos tradicionais.

Em geral, Lugo faz um governo dicotômico, levando internamente a avanços nas políticas sociais e no combate à corrupção e, externamente, a conquistas históricas como o acordo com o Brasil e a mediação da contenda entre Colômbia, Equador e Venezuela. No entanto, para alguns movimentos populares, há mais dúvidas que certezas quanto ao governo Lugo.

Justamente essas dúvidas e incertezas compõem o mosaico pelo qual a mídia brasileira prefere apresentar o presidente do Paraguai, caracterizando-o como um governante populista, nacionalista, intempestivo, problemático. Ou ainda pior, explicitando estereótipos e preconceitos que povoam o imaginário brasileiro em relação ao Paraguai, como a falsificação. Acarretando na substituição das questões ideológicas e históricas do debate político pela encenação, bem como do conteúdo pela forma. Enfim, distanciando-se de uma abordagem contextualizada e ampla da complexidade do atual contexto do Paraguai.

Que Paraguai é esse retratado pelas mídias latino-americanas?
Segundo a abordagem das mídias brasileiras, o presente, no escopo latino-americano, apresenta-se permeado pelas sombras do passado. Por um lado, as sombras do populismo, por outro, as do autoritarismo. E, como pano de fundo, o imperialismo. Tal panorama é visível nos acontecimentos ocorridos recentemente em Honduras – deposição do presidente eleito, legitimação de um golpe de Estado, que pode se espalhar por outros países da região.

Observa-se em curso uma articulação dos partidos tradicionais na América Latina para recuperar o terreno perdido nos últimos anos pela vitória de governos de cunho popular. O primeiro movimento ocorreu em Honduras. O Paraguai pode ser o próximo alvo, contando ainda com a possibilidade de uma vitória eleitoral da direita chilena.
No Paraguai, os recentes acontecimentos apresentam as possibilidades de um golpe de Estado, como estratégia de combate a um governo com características populares, que propõem reformulações profundas no Estado, a exemplo da realização de uma reforma agrária integral. Inclusive com episódios como ameaças de bomba, com uma realmente tendo explodido no Palácio de Justiça, sem ferir ninguém.

Da mesma forma, as falas de políticos da oposição no Paraguai têm sido constantes, acenando para a possibilidade de um processo golpista semelhante ao que ocorreu em Honduras. Em entrevista concedida a uma rádio argentina, o senador liberal Alfredo Luís Jaeggli defendeu os golpistas hondurenhos e disse que Lugo estaria “atrapalhando as reformas modernizantes” no país. Na ótica crítica do cientista político argentino, Atilio Baron, o presente da América Latina, demonstra-se marcado pela “volta dos Estados Unidos à sua tradicional política de apoio aos golpes militares e aos regimes autoritários afins com os interesses imperiais”.

É nesse cenário de crise política da América Latina, de governos populistas, de democracias restritas, que o contexto atual do Paraguai e de seu presidente são retratados pela mídia brasileira. Um cenário sombrio para a região, permeado de incertezas e desafios. Seria esse mesmo o presente do Paraguai? Mesmo depois da quebra da hegemonia do poder do Partido Colorado e do surgimento no cenário político de um novo ator, sustentado por uma coalização de movimentos sociais e partidos políticos de centro-esquerda e centro-direita?

Na verdade, apenas a ponta do iceberg da complexa realidade social do Paraguai foi apresentada pela mídia brasileira. A exemplo de matérias da revista Época e do jornal Folha de São Paulo, que se reservaram a noticiar apenas a troca de comando nas forças armadas do país vizinho, promovida por Fernando Lugo. Sem, contudo, refletir sobre a conjuntura que levou o presidente paraguaio a tomar essa decisão. Diferente de jornais argentinos, como o Página 12 e o Clarín, que buscaram demonstrar o clima de instabilidade que ronda o Paraguai.

Percebemos que faltam algumas peças no mosaico do presente paraguaio trazido pela mídia brasileira. Peças que não obstante, oferecem elementos interessantes para pensar as lógicas e os contextos desse presente, visualizando-o de forma ampla, problematizando e atentando para fatores históricos e simbólicos. Ainda, essa maneira de abordar o presente do espaço latino-americano, de forma distante e pouco reflexiva, tem sido construída constantemente pela mídia brasileira e pouco contribui para a compreensão de temas relevantes, como a integração nacional e as ações afirmativas nesse sentido, como é o caso do Mercosul.

A crítica, observada enquanto um movimento de deslocamento, para além de uma visão maniqueísta entre certo e errado ou entre positivo e negativo, compreende as condições do processo de construção dos acontecimentos, ou seja, dos contextos que o envolvem. Nesse sentido, a crítica das práticas jornalísticas surge como uma atividade de observação e análise do jornalismo enquanto campo de construção dos acontecimentos, que busca “mostrar o que é objetivado, como os acontecimentos são objetivados e como aparecem e o que permanece subjacente à materialidade discursiva” (MAROCCO, 2008, p. 88).

O presente surge assim como espaço privilegiado para a crítica, pois se constitui de um somatório de estratégias de poder e saber, de regimes de verdade que se expressam por meio da codificação do social, das relações de poder, de aparelhos institucionais. Dessa forma, o analista, na condição de crítico das práticas jornalísticas, deveria atentar para as questões da atualidade, ou seja, para o momento histórico que vivencia, enfim, uma análise crítica dos fatos do presente na ordem dos acontecimentos históricos.

Diversos autores² buscam pensar sobre modos de produção jornalística, mais especificamente, procuram refletir sobre as formas como o jornalismo constrói as notícias, aborda os fatos, apresenta a realidade. Assim, a crítica das práticas jornalísticas está ligada a uma concepção clara sobre essas mesmas práticas, que dizem respeito a um modo particular de construir a realidade social. Nesse sentido, esse conjunto de autores demonstra a necessidade de atentar para o modo pelo qual os meios de comunicação decidem o que vão dizer e por quê, uma vez que o principal papel do jornalismo é formar e reformar diariamente o presente social, que servirá de referência para a interpretação e para os comentários do público.

Assim, uma crítica permite tomar o acontecimento, enquanto processo amplo e diversificado, atentando para as suas relações com a história e memória, por exemplo. Em outras palavras, uma concepção crítica das práticas jornalísticas permite, a grosso modo, busca entender porque uma notícia é publicada e comentada no lugar de outra, que consequentemente é excluída. Enfim, de que maneira o jornalismo constrói e relata aquilo que o público carece de pensar, apreender, acompanhar.
Da mesma forma, a problematização desses autores, evidencia a necessidade de uma observação crítica do jornalismo, ancorada em teorias que permitam uma visão global e ampla das ações e estratégias do jornalismo na apresentação e construção da realidade social.
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Por Rafael Foletto - Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. E-mail – rafoletto@gmail.com.


¹A dimensão dessa inserção pode ser visualizada em um dos episódios do especial “A Conquista do Oeste”, da RBS TV, que narra a vida, as histórias, o dia-a-dia de agricultores gaúchos no Paraguai.. O produto, conforme Urbim (2006), obteve recorde de vendas com mais de 11 mil unidades comercializadas (LISBÔA FILHO, 2009).
²Como exemplo desses autores podemos citar: Fontcuberta (2006), Gomis (1991), Marcondes Filho (2002), Prado (2002) e Ramonet (2001).
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sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Jornalismo e Multidão

Mesmo que a multidão1 se re-aproprie cada vez mais das tecnologias de comunicação e informação, ainda há o domínio das mídias de massa. Estas dizem respeito às grandes corporações de rádio, TV, jornal impresso, etc. É importante desvincular a multidão dos receptores dessas mídias. As massas são homogêneas; nelas as singularidades são esmaecidas em seu potencial. Félix Guattari diz que a massa é capturada, principalmente em sua subjetividade, pelas mídias dominantes2.

Já a multidão difere internamente e cultiva sua diferença, e resiste. Porém, a multidão não está de um lado como sujeito positivo e a massa de outro como receptáculo indefeso. Somos massa em nossa impotência, multidão em nossa criatividade, povo no momento em que nos rendemos ao Estado3.

O excesso de produção em redes a-centradas, que têm como princípios a colaboração e a comunicação, no ciberespaço possibilita à massa sujeitada se tornar multidão4. Essa multidão torna comum, compartilha, o que deveria ser de todos (no caso, bens imateriais) e cria relações horizontais, independentes de corporações e do Estado.

Segundo Henrique Antoun, inúmeros grupos na atualidade, baseados na internet, se tornam ingovernáveis, pois se organizam em redes autônomas. Pierre Lévy, na época em que a Internet estava sendo configurada, previu que ela permitiria democracia em tempo real. O conceito de multidão de Negri e Hardt diz também respeito a projeto de democracia: hoje a multidão teria a possibilidade de se autogovernar.

Quanto ao jornalismo, o tema proposto para essa crítica, como efeito da produção na internet, ele se torna mais flexível, deslocando a posição do receptor. Imagens amadoras são usadas no jornalismo de massa. Blogs se tornam fontes. O não-profissional é levado a criar notícias nos grandes meios. Isso deveria significar a ruptura com o discurso legitimado, com a representação.

Mesmo que alguns teóricos louvem essa flexibilização, nos questionamos sobre sua validade a partir de uma pergunta: é ação política? A política que tratamos aqui não é a do Estado ou do poder em rede global5, como também não é a política dos sujeitos historicamente legitimados, que desejam tomar o Estado, como a classe trabalhadora. A política aqui concerne às ações feitas pela multidão que a tiram do papel de massa sujeitada, indo de encontro aos poderes dominantes, em nível político, econômico, social, subjetivo, midiático, etc.

A flexibilização do jornalismo seria realmente política se conseguisse romper com lógicas como: centralizações, hierarquias, fins financeiros, discurso legitimador dos poderes; e isso só é possível fora das mídias e, aqui no caso, do jornalismo dominante6. Considerando o processo de midiatização da sociedade, em que lugar estaria esse fora? Há fora das mídias? Como ilhas puras, isoladas, não mais são possíveis, o que não é negativo, o interessante são os territórios singulares criados pela multidão dentro do processo.

Consideramos que a ruptura com as lógicas das mídias de massa, com o jornalismo,
com centros de poder que impõem relações, conformam subjetividades, bloqueiam a potência da vida é realizada por um tipo de jornalismo, que chamamos de jornalismo da multidão. Exemplo seria o Centro de Mídia Independente (CMI).

O CMI é coletivo de coletivos. Seus mecanismos mais visíveis são centenas de sites de notícias espalhados pelas grandes cidades do mundo. Cada site que compõe a rede é autônomo e é mantido por inúmeros coletivos que tomam decisões em conjunto. Também não há dependência de poderes exteriores. O CMI seria um tipo de atualização de democracia em espaço local. O site principal, internacional (http://www.indymedia.org/), não se sobrepõe aos outros. Ele funciona mais como divulgador da rede; permite informações necessárias para que novos centros sejam montados; reúne a história do CMI e conteúdos referentes ao seu funcionamento.

Há desejos compartilhados entre as singularidades – coletivos, sujeitos, sites. O desejo macropolítico diz respeito a uma outra realidade. Isso é visível no CMI por sua ligação com os movimentos por outra globalização. Ele nasceu em Seattle, 1999, como forma de reportar as manifestações contra o encontro da Organização Mundial do Comércio.

Já o desejo localizado no campo da comunicação concerne à criação de outra mídia. Esses desejos são contra-hegemônicos e não podem ser separados: as mídias desempenham seu papel na legitimação do Império, ou seja, sua re-apropriação deixa de ser ação local para se tornar imprescindível, dizendo respeito a todos. Criar outra mídia, romper com as lógicas das mídias de massa é se chocar com o poder do Império. Isto pode ser relacionado ao conceito de pós-mídia de Guattari: a re-apropriação das mídias pela multidão, sua ressingularização.

No jornalismo da multidão do CMI, a notícia é apenas mais um de seus elementos, não o mais importante. As notícias de maior destaque (os editoriais) são feitas pelos coletivos, as de menos, por qualquer um a partir de publicação aberta. Poderia ser dito que as notícias feitas pelos coletivos são mais importantes, ou seja, os participantes da organização do CMI teriam certo poder. Entretanto isso é questionável, pois é permitido, de certa forma, a qualquer um montar site ou coletivo, propor editoriais, participar das discussões do grupo em listas abertas
na internet.

Quanto às notícias da publicação aberta, elas não são feitas necessariamente por qualquer um. Em análise do CMI brasileiro (http://www.midiaindependente.org/) percebemos que há convergência de minorias diversas. Segundo Gilles Deleuze e Guattari, as minorias portam devir7 que se choca com modelos dominantes. O que acontece no momento em que elas (as minorias) deixam de ser marginalizadas e passam – ou podem passar – a se tornar protagonistas no jornalismo?8. As notícias dos dois tipos de publicação são, em boa parte, críticas9, tendo como conteúdo o choque com dispositivos de poder, além de tratar das questões da multidão, assim rompendo com os valores do jornalismo dominante que nega seu potencial político.

Os elementos que estruturam o jornalismo dominante negados pelo CMI são inúmeros. O jornalista como profissional. Relações hierárquicas, burocráticas. O jornal que após ser feito se torna estático. Modos de agir, códigos de conduta. A empresa que acumula toda a produção. Fins financeiros. A necessidade de captura do público que conforma o discurso. Salários. A busca idealizada da verdade e imparcialidade (ou o discurso que prega essa idealização).

No CMI não há modos de agir, aliás, como organização de resistência, ele tenta criar ambiente em que as singularidades tenham movimentos livres10. Os participantes e colaboradores não são profissionais, mas também não são amadores – o CMI não é hobby. A produção não gira em torno de fins como salários, acúmulo financeiro, ela acontece a partir de desejos de multidão. Quanto à materialidade dos
sites, não há como prever a forma que ela irá tomar, pois não há controle das notícias da publicação aberta. Por isso a pergunta: o CMI faz jornalismo ou outra coisa? Mas isso importa?

Este ensaio deveria ser uma crítica das práticas jornalísticas. Analisamos o jornalismo da multidão do CMI com a intenção de criticar o jornalismo dominante. Nossas considerações finais: o jornalismo diferenciado não é o jornalismo mais colaborativo, mais flexível, das grandes corporações. Entre este jornalismo e o tradicional só há diferenças de grau, não de natureza; as lógicas se mantêm. Entretanto quando o jornalismo realmente se diferencia, é produzido um plano composto de elementos heterogêneos. No caso do jornalismo da multidão do CMI, jornalismo, cibercultura, resistências, multidão, política, biopolítica, compõem esse plano. O jornalismo da multidão é associado ao jornalismo por mero hábito, ele é sim forma de resistência, nas palavras de Foucault, insubmissão voluntária.

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Por Diego Carvalho, formado em Jornalismo pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, mestrando em Comunicação Social na UNISINOS.

1 A multidão é o sujeito político da atualidade conceituado por Antonio Negri e Michael Hardt. Fazem parte dela todos os governados e explorados e as resistências ao poder global. Sua forma é a de rede preenchida por singularidades que agem a partir do que elas têm em comum.

2 É importante considerar que Guattari, no caso, não trabalha apenas com conceitos negativos. Para ele, há tipos de resistências referentes à captura da subjetividade, o que ele nomeou de revolução molecular.

3 Para Hobbes, o povo é uno, representa uma vontade única. O povo está associado diretamente ao Estado, se for Estado, é povo, mas se faltar o Estado, não pode haver povo.

4 Aqui não negamos o conceito de mediações de Jesus Barbero. Porém, trabalhamos com a hipótese de que o usuário se torna realmente ativo, faz resistência, no momento em que ele deixa de ser receptor e passa a ser produtor. Entretanto, como será visto, não é qualquer tipo de produção que consideramos válidas politicamente.

5 O Império é o poder global atual. Sua forma também é de rede, esta composta pelos Estados-nação dominantes, administrações supranacionais e organizações não-governamentais. Ele difere do Imperialismo centrado no Estado-nação

6 Para Peter Pál Pelbart, no ambiente de trabalho acontecem formas de insubmissão. Deleuze e Guattari dizem que a insubmissão é possível na burocracia. Ou seja, há exterioridade dentro de dispositivos de poder. Também trabalhamos com a premissa de que mesmo o jornalismo hegemônico, por ser feito pela multidão – ela é o agente produtivo do Império –, possibilita potência biopolítica.

7 Devir, como conceito de Deleuze e Guattari, concerne à experimentação de processo que escapa de estados bem definidos, modelos dominantes, divididos binariamente: classes (dominante e sujeitada), sexos (homem e mulher), raça (brancos e outros), idades (adulto e criança). Os devires dizem respeito aos micro-sexos, às micro-raças, a uma outra infância que experimentamos. Essa experimentação não se dá no nível do imaginário, dos sonhos, mas concerne a territórios singulares que criamos.

8 Foucault e Deleuze participaram do G.I.P. (Grupo de informação sobre as Prisões) no início dos anos setenta. Um dos objetivos era possibilitar que presos pudessem desenvolver suas próprias teorias, os tornando independentes da mediação do intelectual. Consideramos que há semelhança com o que ocorre no jornalismo da multidão: a mediação do jornalista profissional e da empresa é eliminada, permitindo a autonomia da multidão.

9 Para Foucault, a crítica, a atitude crítica, é a arte de não ser governado, tem a função de desassujeitamento, é forma de insubmissão frente à arte de governar

10 A mobilidade é de extrema importância para a multidão. Isso é visto nos movimentos de migração: a multidão deseja habitar o mundo livremente; ela o percorre em busca de outra realidade.
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